No
extremo da ilha, a deitar por sobre o quarto mar, onde se sabia ser
já terra menos abençoada, erguia-se o segredo de Pé de Urutago
para que o instruíra Pai Todo. O segredo dos guerreiros de vocação
para o voo se consumava ali, atarefados todos que estiveram com a
mesma ciência, o mesmo silêncio. Era muito sem vocábulo. Tinha
nome, mas necessitavam calar para que se cumprisse a própria
Divindade, que pedira adiamento e nenhuma notícia. Não se haveria
de perigar seus comandos e sua esperança.
O
grande corpo de Pé de Urutago movia-se entre a estranha estrutura
que era uma outra vegetação. Uma que não vinha de raiz, não
cobria de verde, não brotava fruto nem flor. Era branca. Uma mata
pálida que o guerreiro cuidava de não ser coberta ou devorada por
parasitas de quaisquer espécies. Carregando o corpo do inimigo, tão
ao contrário do que sabia a comunidade, o guerreiro tinha a seu
cargo um outro ritual. Um que precisava de executar sozinho, sem
ninguém. E ele levava o inimigo morto para o lugar aberto de uma
pedra à altura de meia perna e o deitou para começar a cortar. Era
sempre sem discurso, sem abrigo, sem canção, sem flauta. Era sem
demora. Pé de Urutago separava a carne dos ossos e tomava também a
cabeça que decompunha dente a dente. Ao avesso do que sabiam os
abaeté, o guerreiro ofendia a cabeça do inimigo e usava sua boca
que não mais desceria enterrada. Então, imaculadamente limpo cada
galho ósseo, encarou a imensa estrutura e decidiu. Atou numa ponta,
correu, atou na outra, juntou alguns dentes num canto, outros ao
longe, subiu para deixar pequenos ossos como flores de sal ao cimo,
desceu para cravar algo mais no chão, como se aquele esqueleto
gigante de quinhentos guerreiros ganhasse um novo pequeno pé. E
afastou. Galho por galho, à luz intensa da tarde, incandescia a
alvura daquela bizarria. Incomensurável, ali estava a mata de osso
que reunia por imaginação aquele que seria o corpo tendente da
Verdadeiríssima Divindade. Era o corpo tendente da Divindade que
haveria de descer quando estivesse no instante certo e deitaria carne
viva sobre aqueles ossos e habitaria a mata de jeito concreto na
companhia de toda a criação. Um dia, quando o guerreiro de vocação
alada colhesse o osso do relâmpago, nada mais faltaria para que o
novo tempo e a nova ternura iniciassem. Era a intuição a que haviam
acedido todos os pajés e para a qual haviam educado todos os
guerreiros esperados para subir o clarão.
A
Divindade virá e amará o esforço, o engenho e a imaginação
abaeté, depois, deitará carne sobre os ossos e moverá seu corpo
imenso para caminhar entre a criação. Será de tão vasto tamanho,
tão cheia de bocas e atonará tantos olhos que poderá escolher
beijar cada um e cada fera, cada árvore e cada pedra, ou poderá
escolher devorar até sobrar mais nada novamente. Deprimida com o
torpe dos espíritos, cansada da criação, a Divindade poderá
escolher mover o corpo para o fim de todos os tempos. O novo tempo
seria não haver tempo nenhum.
Pé
de Urutago entristeceu por haver ameaçado matar o pequeno Honra, um
tão fiel e desafiado abaeté. Mas não o poderia deixar saber que
movia um inimigo pela mata, excluído dos rituais de abrigo, excluído
de toda a gentileza da comunidade educada por tanta ancestralidade. O
grande guerreiro aumentou o corpo tendente da Divindade e regressou
ao areal. Caminhando longamente por tanta terra que os abaeté
consideravam apenas silvestre. Uma terra a ir embora, sem alegria,
feras por acordar, povos de feras sem ofício na guerra ou na fome
abaeté. Tanta coisa sem nome, medrando no puro silêncio. Para ali,
ninguém abeirava. Dava horror e dava compaixão. Criado o mundo,
muito do mundo era por ganhar valentia. Valia de nada para a
comunidade dos bons. Certamente apenas apodrecia, sustentava bichos e
ideias podres, e seria por isso que multiplicavam os brancos.
A
mesma coisa pensou o guerreiro sempre ferido. O grande Pé de Urutago
o ameaçou para esconder a matança de um inimigo excluído do abrigo
e da dignificação abaeté. Honra pensou que Pé de Urutago
emocionara e usava os mortos para sua emoção sem sentido, levando
ali a cabo uma tarefa sem serventia, um desperdício e ofensa a tudo
quanto era imposto à gentileza do povo das ilhas de três mares. O
feio branco chorou. Caminhou por entre os ossos erguidos num
esqueleto inexplicável, impraticável, e chorou. Não tinha
compaixão pelos inimigos. Era bom que tombassem, era bom que Pé de
Urutago os caçasse em tão tremenda abundância e os terminasse de
qualquer ataque. O que comovia Honra era o medo que sentia pelos
abaeté que se mascaravam. Aqueles que não vigoravam nos límpidos
gestos chefiados, na inspiração tão antiga, na intuição de cada
instante que os ancestrais generosamente noticiavam. A Voz Coral
berraria de dor se houvesse de prestar atenção ao que ia ali por
aquela terra já enjeitada. Mais se comoveu o guerreiro, até que
Meio da Noite entoou:
e
se não for maldade. E se for alguma tarefa por noticiar. Uma tarefa
incompleta que aguarde por certo detalhe, um certo osso, que seja.
Pode tudo isto aguardar um só inimigo. Um inimigo que depois permita
explicar, mostrar à comunidade, oferecer à comunidade este
resultado e sua ciência. Sagrado Honra, não te impressiones senão
com o tamanho dos ossos, a beleza morta que aqui está. Pode ser que
o guerreiro grande cumpra uma chefia que desconhecemos. Não me
parece bom acusarmos nem questionar. Melhor não entoar nada sobre
isto. Esperar. Ver o que ensina o tempo. Saberemos antes de todos
porque já começamos a saber. E isso deve merecer calma, paciência,
e toda a esperteza de nossa guerra. Não entoes sobre nossa guerra.
Isto está no caminho de todas as nossas vitórias. Eu tenho a
certeza. Isto fará parte de todas as nossas vitórias.
O
feio branco não confiou, incandesceu os olhos sobre o amigo,
agradeceu o esforço para o aquietar. Respondeu:
não
sinto.
Meio
da Noite perguntou:
e
porque te comove que o grande guerreiro descumpra as chefias mais
rigorosas quando tu mesmo resistes a cumprir e odeias tão avesso à
natureza abaeté. Tanto que chego a admirar o teu ódio, a bravura
que te dá, a fidelidade à vingança do povo.
O
branco não respondeu. Seria incapaz de confessar que usava a cor
como desculpa para ser torpe. Incapaz de uma aprendizagem gentil,
Honra escudava-se na cor para ser torto. Queria que ser torto fosse
sem culpa, para se corromper sem limite na voracidade de seus
sentimentos. Viciava-se naqueles sentimentos. Odiar era caminho sem
muito regresso. Talvez também nunca tivesse lugar de chegada. Era
uma ida contínua, sem satisfação.
Tomou
um osso à sorte, escolhido sem grande importância, e no lugar
deixou a flauta que nunca haveria de esculpir. Melhor disfarçaria a
raiva se desfeito do resto morto do inimigo que ele próprio tombara.
Pensou. Menos raiva o haveria de acometer. E Pai Todo rebrilharia de
orgulho quando desse com ele a tocar, a cantar as mais importantes
canções.
O
feio negro perguntou:
o
que vais querer cantar.
Honra
entoou:
canções
graves. Tristes. Canções que nos estimem a inteligência mas
permitam a consciência de alguma dor. Quero prosseguir com minha
obrigação de chorar, sagrado Meio da Noite.
O
negro entendia mal o ofício tão importante do choro. Por imitação,
respondeu:
não
sinto. Haverei de sentir.
Honra
apenas pensou e Meio da Noite berrou vinte onças num lamento
incontido. Por dor ou fúria, o negro berrou mais vinte onças, e o
guerreiro branco temeu que sua pele fosse tocada e se afastou um
pouco. Poderia ser o som daquele bicho. Ele mais pensou. Que vinte
onças poderia ser o som daquele bicho, se a mata inteira de osso
tivesse carne e se pusesse a caminhar. O guerreiro sempre ferido
depois chamou:
sagrado
Meio da Noite. Sagrado Meio da Noite.
Mas
o negro era em lugar nenhum. Até sua pele parou de ser tocada. Como
se os insectos que lhe pousavam ou subiam tivessem finalmente
debandado. E ele, em sobressalto, novamente chamou:
sagrado
Meio da Noite. Onde estás.
Então,
o negro abeirou, refeito de uma sombra, e entoou que melhor seria que
fossem em regresso. Honra duvidou se aquela prudência era do negro
ou sua. Um insecto voltou a voar para seu ombro. Não o viu. Sentiu
como quase lhe mordeu a pele. Olhou o negro e não confessou mas
soube que não quereria mais ficar sozinho daquele amigo. Quando
declarara que eram gémeos não havia mentido. Eram-no. Diferiam, mas
não diferiam de ser opostos. Eram duas partes de uma ideia só.
Agora, o guerreiro branco faria qualquer coisa por seu amigo que não
lhe mentira. Provara que até a absurda coisa de uma mata de osso
existia. Provara que não mentia. Era puro. O negro era puro.
Inventado pelas mais gentis causas.
*
Então,
caminho para a aldeia, Honra o avisou de que pedira por ele a Dois
Amanhãs. Pediu que lhe mexesse o corpo. O negro saltitou na mata
como os filhotes e brincou palavras brancas rápidas que o amigo não
pôde entender. Honra, animando-se um pouco, afirmou:
vou
brincar palavras também. As palavras abaeté mais belas que abrigam
esperança e criam sorte.
Então,
entoou:
o
mar da flor, o doce do esquecimento, a feminina gentil, o filhote de
tapir, a consciência tardia, o igarapé que salta, o pequeno
igarapé, o muito grande igarapé, todas as cachoeiras, o beijo do
tamanduá, o trovão da terra, o fogo das araras, as conversas das
araras, as chuvas castanhas, o beijo do jacaré, há um jacaré no
teu peito. Animal negro, tens um jacaré no peito e só ele te vai
querer beijar alguma vez.
Rindo,
Meio da Noite entoou:
o
cheiro e o sabor das femininas. O cheiro e o sabor de Dois Amanhãs.
Obrigado. Vou dormir a sonhar com as folias. Dois Amanhãs é bela.
Como é bela a nossa feminina. Obrigado, sagrado Honra. Os povos
negros rejubilam.
Saltitando
sempre, apressados mata fora para a aldeia litoral, os feios tomavam
suas lanças como se matassem originalidades pelo caminho.
Vociferavam. Vociferavam muito, sem sentido nem compromisso. Então,
num instante em que Honra se deteve para colher do chão o osso que
deixara cair, Meio da Noite encheu o peito e berrou mais vinte onças.
A mata partiu. Aves e roedores, feras felinas, insectos, aranhas e
todos os bichos que pudessem dar passo ou salto partiram dali.
Levantou-se o sopro vocabular do vento. Honra entoou:
como
fede, e como é perfeito um berro assim.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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