Talvez
algum leitor ainda se lembre de um texto meu publicado nesta seção
sob o título de “Amor” – em 11 de setembro passado. Talvez se
lembre de que se tratava de um homem que vi que transformava um quati
em cachorro, com coleira e tudo, e o quati estava confuso quanto à
própria raça. Também contei que o quati, se visse outro quati,
reconheceria quem ele mesmo era. E então como que lhe pedi que,
livre da natureza que lhe fora impingida, não julgasse o homem
porque este o fizera por ser carente de amor. Sim, isso antes de
abandoná-lo, é claro. Porque, descoberta a própria identidade, o
ser é e não retrocede.
Um
leitor resolveu outra história sobre o quati e o homem, narrativa
cheia de peripécias, algumas talvez arbitrárias, algumas profundas.
É dessas histórias que a criança ouve de olhos arregalados, mesmo
sem entender tudo, antes de dormir. Dirige-se o inventor a mim como
C.L. e a assinatura é uma letra única, e ainda por cima ilegível.
Copio as aventuras do quati na íntegra:
“O
dono do quati pensou que o bicho havia encontrado outro dono. Sentiu
saudades e aquela dor própria de dono de quati, mas ficou na
dele. Não demorou muito e o quati, que havia desaparecido,
retornou à casa do primeiro dono, ainda com a marca da coleira no
pescoço. Não se pode afirmar que tenha havido um segundo dono no
destino canino do quati.
“– Muito
bem – disse-lhe o homem – agora terás que latir. Ele sabia que o
quati nunca poderia fazer isto. O bicho esgueirou-se e foi deitar no
leito com o qual se havia acostumado. Durante dois dias o dono do
quati não fez outra coisa senão cuidar de uma rosa que tentou
conservar dentro de um copo com água. A rosa morreu. Depois disso,
tentou fazer com que o quati o acompanhasse e se comportasse como
cachorro, mesmo sem o uso da coleira. O bicho não se saiu bem. O
dono do quati andou pensando em levá-lo para alguma floresta
distante, soltá-lo e deixá-lo morrer de liberdade, mas no fundo ele
gosta do bicho, não como se gosta de um cachorro ou de um quati, mas
como se este fosse gente, porque o dono do quati não sabe gostar de
pessoas verdadeiras. No fim eu direi o motivo.
“Primeiro
vou contar-lhe que, quando o quati ainda era filhote, seu pai foi
brutal e covardemente morto por um desses homens que se dizem
caçadores a serviço da virtude, mas de fato odeiam todo animal
sadio e livre. A mãe do quati, não tendo encontrado outro de sua
espécie, resolveu aceitar a companhia de um cachorro. Foi este
cachorro quem primeiro tentou adulterar a essência do quati órfão,
não para transformá-lo em cachorrinho, mas deixar bem evidente que
quem nasceu quati jamais teria a dignidade de um cachorrão e haveria
de ser sempre um quati qualquer miserável.
“O
padrasto cachorrão não gerara filhos e o pequeno quati era um belo
espécime de olhos vivos. Isto talvez explique muita coisa. O próprio
filho do quati, recalcado, e não compreendendo nada da vida, embora
nunca esquecesse a imagem do pai bem-amado, passou a sonhar ser
cachorro. Foi fácil encontrar alguém que, paternalmente, lhe
colocasse uma coleira. O pitoresco desta história é que o homem que
se transformou no dono de um quati, também foi criado por um
cachorro e mamou numa cadela.
“Nunca
foi órfão, mas o pai fugiu às suas responsabilidades antes de
ficar noivo com aquela que veio a ser a mãe do dono de um quati. A
mulher abandonada foi escravizada por uma família de mercadores que
a levaram para longe de sua terra natal. Quando a criança nasceu,
constatou-se que o leite materno era fraco. Nessa época ainda não
havia leite em pó e o leite de vaca não servia. Uma ama de leite
seria muito cara, em se tratando de beneficiar o filho de uma
escrava. Na casa dessa gente estranha ocorrera um fato
extraordinário: na mesma época, uma mulher que se transformara em
cadela, dera à luz um lindo garoto e seu leite era suficiente para
alimentar também o filho da escrava.
“Enquanto
este mamava na robusta cadela (que não gostava dele evidentemente),
o desta, inclusive por estar muito gordo, era amamentado pela
escrava. Você pode imaginar a confusão que se gera na alma das
pessoas quando estas coisas acontecem. O filho da escrava cresceu com
problemas afetivos em relação a pessoas e a cachorros e sempre com
inveja do seu irmão colaço. Tentou um dia adotar um quati como se
este fosse um cachorro e quis amá-lo como se fosse gente. O filho da
escrava sabe que o amor humano inteiro para ele é impossível, mas o
amor que houver não pode ser ruim. O amor, se é amor, nunca pode
ser ruim. Pode ser ódio disfarçado.
“Para
todos os personagens dessa história e para todos nós, a grande
tarefa é o reencontro da essência perdida, a conquista da
integridade, a realização da totalidade. A tarefa é o espírito.”
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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