O
assassino recebeu um prêmio de consolação constrangedor ao chegar
à sala e encontrar o restante deles — “o rol de bichos de
estimação idiotas do Tommy”, como chamávamos. Isso para não
falar dos nomes. Alguns diriam que eram sublimes; outros, ridículos.
O primeiro que o homem viu foi o peixinho-dourado.
Ele
olhou de soslaio para a janela e encontrou o aquário. Viu quando o
peixe disparou, deu de cara no vidro e cambaleou para trás.
Suas
escamas pareciam uma penugem.
Sua
cauda, um ancinho dourado.
AGAMENON.
Uma
etiqueta descascada na parte de baixo do aquário o apresentava com
garranchos infantis e irregulares escritas com canetinha verde. O
Assassino conhecia aquele nome.
Deitado
no sofá detonado, entre o controle remoto e uma meia imunda, dormia
um gatão cinza e bestial que atendia pelo nome de Heitor: um felino
tigrado com patas pretas gigantescas e um rabo que parecia um ponto
de exclamação.
Por
vários motivos, Heitor era o animal mais desprezado da casa, e,
mesmo com todo o calor, ele estava todo enroladinho, um C peludo e
gordo, exceto pelo rabo, que parecia uma espada felpuda fincada ao
corpo. Quando trocou de posição, tufos e mais tufos de pelo voaram
no ar, mas o bichano continuou dormindo, plácido — e ronronante. O
motorzinho ligava toda vez que alguém se aproximava. Até
assassinos. Heitor nunca foi muito criterioso.
Por
fim, no topo da estante de livros, jazia uma gaiola grande e larga
que abrigava um pombo.
E
ali ele aguardava, imóvel e austero, mas feliz.
A
porta da gaiola estava completamente aberta.
Quando
decidia caminhar um pouco, a cabecinha roxa balançando com muita
prudência, movimentava-se num ritmo perfeito. Era isso que o pombo
fazia, dia após dia, enquanto esperava para se empoleirar no ombro
de Tommy.
Na
época o chamávamos de Telê. Ou Tetê.
Mas
nunca, em hipótese alguma, o chamávamos pelo seu enervante nome
completo: Telêmaco.
Nossa,
como a gente odiava Tommy por ter escolhido aqueles nomes.
A
sorte dele é que todos nós entendíamos:
O
garoto sabia muito bem o que estava fazendo.
***
Quando
entrou na sala, o Assassino olhou ao redor.
Parecia
que aquilo era tudo:
Um
gato, um pássaro, um peixe-dourado, um assassino.
E,
é claro, uma mula na cozinha.
Um
bando nada perigoso.
Em
meio àquela luz estranha e ao calor persistente, e entre os demais
itens da sala — um notebook velho muito maltratado, os braços do
sofá manchados de café, os livros didáticos empilhados pelo
carpete —, o Assassino sentiu a presença intimidante da peça logo
atrás. Só faltou ela dizer “bu!”.
O
piano.
O
piano.
Meu
Deus, pensou ele, o piano.
Um
piano vertical de madeira, todo empertigado, acomodado em um canto,
com a tampa fechada e coberto por um mar de poeira:
Circunspecto
e calmo, tremendamente triste.
Um
piano e nada mais.
Não
se engane: o instrumento poderia parecer inofensivo, mas, assim que o
viu, o Assassino sentiu uma comichão no pé esquerdo. Sentiu uma dor
tão forte no peito que quase fugiu em disparada pela porta.
Um
momento e tanto para o primeiro pé pisar na varanda.
***
Havia
uma chave, uma porta, um Rory e nenhum instante para se recompor.
Todas as palavras que o Assassino poderia ter ensaiado fugiram de sua
boca, e o ar já começava a lhe faltar. Sentia apenas o gosto do
coração acelerado. Só conseguiu vê-lo de relance, porque o garoto
disparou pelo corredor como um raio. E o pior é que o homem não
conseguiu discernir quem era. Vergonhoso.
Eu
ou Rory?
Henry
ou Clay?
Com
certeza não era Tommy. Alto demais.
Tudo
que conseguiu assimilar foi o corpo que se dirigia à cozinha, de
onde, naquele instante, veio um rugido alegre.
— Aquiles,
seu desgraçado! Cara de pau!
A
geladeira abriu e fechou, e foi então que Heitor levantou a cabeça.
Pulou com um baque surdo no carpete e alongou as patas traseiras
daquele jeito trêmulo que os gatos fazem. Saiu andando e entrou na
cozinha pelo outro lado. O tom de voz mudou no mesmo instante.
— Porra,
Heitor, o que você quer agora, hein, seu merdinha? Já falei: se
você subir na minha cama de novo, juro que vai virar churrasquinho.
O
farfalhar de um saco de pão, o som de um pote de vidro se abrindo. E
então outra risada.
— Aquiles,
Aquiles, meu camarada...
É
claro que ele não levou a mula para fora. Tommy que cuide disso,
pensou. Ou melhor, eu que encontrasse o bicho dentro de casa mais
tarde. Seria impagável. Pronto, decidiu-se.
Tão
rápido quanto entrara, o vulto passou pelo corredor rumo à sala, a
porta da frente bateu, e o Assassino se viu sozinho de novo.
***
Como
é de se imaginar, levou um bom tempo para se recuperar daquele quase
encontro.
Coração
acelerado, respiração ofegante.
A
cabeça pendeu para a frente, uma trégua para os pensamentos.
O
peixe-dourado bateu a cabeça no aquário.
O
pássaro ficou olhando para ele, então começou a marchar de um lado
para outro como um coronel, e logo o gato retornou; Heitor adentrou a
sala de estar e se sentou, esperando a cena seguinte como um
espectador. O Assassino tinha certeza de que conseguia ouvir as
palpitações — a fricção, o estrondo. Dava para sentir nos
próprios pulsos.
Uma
coisa, pelo menos, era certa.
Ele
precisava se sentar.
Sem
delongas, ele se instalou no sofá.
O
gato lambeu o focinho e saltou.
O
Assassino o flagrou em pleno ar — uma bola gorda e cinzenta de
pelos e listras — e se preparou para acomodar o felino. Por um
instante, ficou em dúvida: deveria acariciar o gato? Para Heitor,
não fazia diferença — ele só queria ronronar no colo do
estranho, inclusive afofando-o, destroçando as coxas do Assassino.
Foi então que outra pessoa chegou.
Ele
mal conseguia acreditar.
Eles
estão vindo.
Eles
estão vindo.
Os
meninos estão vindo, e aqui estou eu, com o maior gato domesticado
de que já se teve notícia. Era como estar preso sob uma bigorna —
e uma bigorna ronronante, para piorar.
***
Quem
entrou foi Henry, afastando o cabelo dos olhos e voando até a
cozinha. Não achou a situação tão hilária quanto Rory, mas
também não se preocupou em fazer nada.
— Aquiles!
De novo você aqui dentro… O Matthew vai surtar outra vez quando
chegar em casa.
Até
parece!
Ele
abriu a geladeira e, dessa vez, se lembrou dos bons modos.
— Amigão,
pode chegar a cabeça pro lado só um pouquinho? Obrigado.
O
ambiente foi tomado pelo tilintar de latas de cerveja sendo tiradas
da geladeira e largadas numa bolsa térmica, e logo ele já estava de
saída, a caminho do parque Bernborough, deixando para trás, mais
uma vez, o Assassino.
O
que estava acontecendo ali?
Será
que ninguém era capaz de notar a presença do homem?
Não,
não ia ser tão fácil assim, e o Assassino ficou ali, estatelado no
sofá, contemplando os detalhes de sua invisibilidade natural.
Empacado entre o alívio que aquela bênção lhe trazia e a vergonha
da própria impotência, apenas se permitiu a inércia. Estava
cercado por um ciclone de pelo de gato que rodopiava à luz do
anoitecer. O peixinho voltou à sua batalha contra o vidro, enquanto
o pombo caminhava a toda velocidade.
Ao
fundo, o piano vigiava a cena.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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