Súbito
ouço uma voz: – Olá, meu rapaz, isto não é vida!
Era
meu pai, que chegava com duas propostas na algibeira.
Sentei-me
no baú e recebi-o sem alvoroço. Ele esteve alguns instantes de pé,
a olhar para mim; depois estendeu-me a mão com um gesto comovido:
– Meu
filho, conforma-te com a vontade de Deus.
– Já
me conformei, foi a minha resposta, e beijei-lhe a mão.
Não
tinha almoçado; almoçamos juntos. Nenhum de nós aludiu ao triste
motivo da minha reclusão. Uma só vez falamos nisso, de passagem,
quando meu pai fez recair a conversa na Regência: foi então que
aludiu à carta de pêsames que um dos Regentes lhe mandara. Trazia a
carta consigo, já bastante amarrotada, talvez por havê-la lido a
muitas outras pessoas. Creio haver dito que era de um dos Regentes.
Leu-ma
duas vezes.
Já
lhe fui agradecer este sinal de consideração, concluiu meu pai, e
acho que deves ir também...
– Eu?
– Tu;
é um homem notável, faz hoje as vezes de Imperador. Demais trago
comigo uma ideia, um projeto, ou... sim, digo-te tudo; trago dois
projetos, um lugar de deputado e um casamento.
Meu
pai disse isto com pausa, e não no mesmo tom, mas dando às palavras
um jeito e disposição, cujo fim era cavá-las mais profundamente no
meu espírito. A proposta, porém, desdizia tanto das minhas
sensações últimas, que eu cheguei a não entendê-la bem. Meu pai
não fraqueou e repetiu-a; encareceu o lugar e a noiva.
– Aceitas?
– Não
entendo de política, disse eu depois de um instante; quanto à
noiva.., deixe-me viver como um urso, que sou.
– Mas
os ursos casam-se, replicou ele.
– Pois
traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa Maior...
Riu-se
meu pai, e depois de rir, tornou a falar sério. Era-me necessária a
carreira política, dizia ele, por vinte e tantas razões, que
deduziu com singular volubilidade, ilustrando-as com exemplos de
pessoas do nosso conhecimento.
Quanto
à noiva, bastava que eu a visse; se a visse, iria logo pedi-la ao
pai, logo, sem demora de um dia. Experimentou assim a fascinação,
depois a persuasão, depois a intimação; eu não dava resposta,
afiava a ponta de um palito ou fazia bolas de miolo de pão, a sorrir
ou a refletir; e, para tudo dizer, nem dócil nem rebelde à
proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim,
que uma esposa formosa e uma posição política eram bens dignos de
apreço; outra dizia que não; e a morte de minha mãe me aparecia
como um exemplo da fragilidade das coisas, das afeições, da
família...
– Não
vou daqui sem uma resposta definitiva, disse meu pai. De-fi-ni-ti-va!
repetiu, batendo as sílabas com o dedo.
Bebeu
o último gole de café; repotreou-se, e entrou a falar de tudo, do
Senado, da Câmara, da Regência, da restauração, do Evaristo, de
um coche que pretendia comprar, da nossa casa de Matacavalos... Eu
deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente num
pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava uma palavra, uma
frase, um verso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas vezes,
sem ordem, ao acaso, assim:
arma
virumque cano
A
Arma
virumque cano
arma
virumque cano
arma
virumque
arma
virumque cano
virumque
Maquinalmente
tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa dedução;
por exemplo, foi o virumque que me fez chegar ao nome do
próprio poeta, por causa da primeira sílaba; ia a escrever
virumque, – e sai-me Virgílio, então continuei:
Vir
Virgílio
Virgílio
Virgílio
Virgílio
Virgílio
Meu
pai, um pouco despeitado com aquela indiferença, ergueu-se, veio a
mim, lançou os olhos ao papel…
– Virgílio!
exclamou. És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente
Virgília.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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