quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Palavras


[…] Mas há também escritores cujo vocabulário e cuja abordagem à linguagem são despojados, secos, até espartanos.
Alice Munro escreve com a simplicidade e beleza de uma caixinha de guardados. Tudo em seu estilo destina-se a não atrair nenhuma atenção, a nos fazer não reparar. Mas se lemos o seu trabalho atentamente, cada palavra nos desafia a pensar numa maneira mais direta, menos exagerada ou ostentosa de dizer o que ela está dizendo.
Seu estilo é aparentemente tão fácil que apresenta outro tipo de desafio: o de imaginar os rascunhos e revisões, os cálculos requeridos para chegar a algo aparentemente tão impensado. Não se trata de escrita espontânea, automática, mas, novamente, do produto final de numerosas decisões, de palavras experimentadas, postas à prova, eliminadas, substituídas por outras melhores – até, como na abertura de “Dulse”, termos uma descrição compacta, completa e penosamente sincera das complexidades de toda a vida de uma mulher, suas circunstâncias amorosas e profissionais, seu estado psicológico, bem como o ponto em que ela se situa ao longo do continuum do início ao fim da vida.

No fim do verão Lydia tomou um barco para uma ilha ao largo da costa sul de New Brunswick, onde pernoitaria. Sobravam-lhe apenas alguns dias antes que tivesse de estar de volta a Ontário. Trabalhava como editora-assistente numa casa editorial em Toronto. Era também poeta, mas não mencionava isso a menos que fosse algo que as pessoas já soubessem. Nos últimos dezoito meses, vivera com um homem em Kingston. Até onde sabia, isso estava terminado.
Havia percebido alguma coisa sobre si mesma nessa viagem às Províncias Marítimas. Era que as pessoas não estavam mais tão interessadas em conhecê-la. Não que tivesse gerado tanto alvoroço antes, mas houvera alguma coisa com que podia contar. Tinha quarenta e cinco anos e estava divorciada havia nove. Seus dois filhos haviam começado suas próprias vidas, embora ainda houvesse recuos e confusões. Ela não tinha ficado mais gorda ou mais magra, sua aparência não se deteriorara de nenhuma maneira alarmante, no entanto havia deixado de ser um tipo de mulher e se tornado outro, e percebera isso nessa viagem.

Observe a intimidade relativa que resulta da escolha da escritora de chamar nossa heroína pelo primeiro nome, as rápidas e hábeis pinceladas – numa linguagem quase tão simples quanto a de jornal – com que as questões essenciais (quem, o que e onde, mas não o porquê) são tratadas. Lydia tem recursos para tomar um barco em algum lugar apenas para um pernoite, mas não ócio nem liberdade suficientes para estender suas férias além dos poucos dias que lhe restam. Sabemos não somente de seu trabalho como editora, mas também de suas férias, e do fato de que as pessoas à sua volta podem saber, ou não, que ela é também uma poeta. Numa frase, somos informados sobre sua vida sentimental e a resignação não dramática (“Até onde sabia, isso estava terminado”) com que nossa heroína rememora os dezoito meses vividos com um amante em quem opta por pensar não pelo nome, mas apenas como “um homem em Kingston”.
Descobrimos sua idade, seu estado civil; ela tem dois filhos. Quanta verbosidade poderia ter sido desperdiçada no resumo dos “recuos e confusões” periódicos que obstruíram os filhos crescidos de Lydia em seu progresso rumo à maturidade. E como a última parte da passagem teria sido menos convincente e comovente se Munro tivesse escolhido expressar a avaliação da heroína em relação a seu efeito misteriosamente alterado sobre os outros (“as pessoas não estavam mais tão interessadas em conhecê-la”) em palavras mais emocionais, mais intensas, mais pesadamente carregadas de autocomiseração, pesar ou desapontamento.
Finalmente, a passagem contradiz uma forma de mau conselho muitas vezes dados a jovens escritores – a saber, que o papel do autor é mostrar, não contar. Nem é preciso dizer que muitos grandes romancistas combinam exposição dramática com longas seções de pura narrativa autoral, que é, suponho, o que se quer dizer com contar. E a advertência contra o contar leva a uma confusão que faz escritores novatos pensarem que tudo deve ser dramatizado – não nos diga que um personagem está feliz, mostre-nos como ele grita “viva!” e dá pulinhos de alegria –, quando de fato a responsabilidade de mostrar deveria ser assumida pelo uso enérgico e específico da linguagem. Há muitas ocasiões na literatura em que contar é muito mais eficaz que mostrar. Muito tempo teria sido desperdiçado se Alice Munro acreditasse que não poderia começar sua história até nos ter mostrado Lydia trabalhando como editora-assistente, escrevendo poesia, rompendo com seu amante, lidando com os filhos, divorciando-se, ficando mais velha, e dando todos os passos que levaram ao momento em que a história corretamente se inicia.
[...]

Francine Prose, in Para ler como um escritor

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