quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Notas do Subsolo | 9


E em minha casa, livre e orgulhosa,
Entra como legítima senhora!

Fiquei parado diante dela, aniquilado, morto de vergonha, asquerosamente confuso e creio que sorrindo, enquanto tentava com todas as forças cobrir-me com as abas do meu roupãozinho de algodão puído – exatamente como eu imaginara não fazia muito, num momento de desânimo. Depois de observar-nos de cima uns dois minutos, Apollon se foi, mas isso não me trouxe alívio. O pior foi que ela também de repente ficou constrangida, num grau que eu nem esperava, evidentemente por ver-me naquela situação.
Sente-se – disse eu mecanicamente e, movendo-lhe uma cadeira junto à mesa, sentei-me no divã. Ela obedeceu imediatamente e sentou-se, olhando-me de olhos bem abertos, pelo visto esperando algo de minha parte. Foi sua ingenuidade, a de esperar algo, que me deixou furioso, mas controlei-me.
O mais conveniente naquele momento seria esforçar-se para não prestar atenção em nada, como se tudo estivesse normal, mas ela... E eu senti confusamente que ela ainda pagaria caro por tudo aquilo.
Você me pegou numa situação estranha, Liza – gaguejei, sabendo que era exatamente desse modo que não se deve começar.
Não, não vá pensar sei lá o quê! – gritei, vendo que ela ficara corada de repente. – Não me envergonho de ser pobre. Pelo contrário, encaro a minha pobreza com orgulho. Sou pobre, mas tenho a alma nobre... É possível ser pobre e ter nobreza de alma – balbuciei. – Bem... você quer um chá?
Não... – começou ela.
Espere!
Levantei de um salto e corri ao quarto de Apollon. Precisava de um lugar onde pudesse sumir.
Apollon – sussurrei apressada e febrilmente, atirando na sua frente os sete rublos que todo o tempo estiveram dentro de minha mão fechada –, aqui está o seu salário. Você vê que estou lhe pagando, mas em compensação você deve me salvar: vá sem demora à taverna e traga chá e dez torradas. Se não quiser ir, vai fazer uma pessoa muito infeliz! Você não sabe que mulher é essa... Ela é tudo! Talvez você esteja pensando sabe-se lá o quê... Mas você não sabe quem ela é!
Apollon, que já havia sentado para trabalhar e acabara de recolocar os óculos, deu inicialmente uma olhada de banda no dinheiro, sem largar a agulha; depois, sem me responder e sem prestar a mínima atenção em mim, continuou sua tentativa de enfiar a linha na agulha. Esperei uns três minutos parado na frente dele, com os braços à la Napoleon. Minhas têmporas estavam molhadas de suor. Sentia que devia estar pálido. Mas, graças a Deus, ele na certa ficou com pena, vendo o meu estado. Quando terminou com a agulha, levantou-se devagar, afastou devagar a cadeira, tirou os óculos devagar, contou o dinheiro devagar e, finalmente, após perguntar-me por sobre o ombro: “É para trazer uma porção inteira?”, saiu devagar do quarto. Enquanto eu voltava para onde estava Liza, passou-me pela cabeça se não seria melhor fugir, sair do jeito que estava, de roupão, ir para longe dali, sem rumo certo, e aí fosse o que Deus quisesse.
Tornei a me sentar. Ela ficou olhando para mim com ar preocupado. Ficamos em silêncio alguns minutos.
Vou matar esse homem! – gritei de repente, batendo com o punho na mesa com tanta força que a tinta respingou do tinteiro.
Ah, que está dizendo?! – exclamou ela, estremecendo.
Vou matá-lo, vou matá-lo! – gritava eu com voz esganiçada, batendo na mesa, completamente descontrolado e, ao mesmo tempo, com plena noção de que aquela fúria era totalmente idiota.
Você não sabe, Liza, o que esse carrasco é para mim. Ele é o meu carrasco... Ele foi agora comprar torradas. Ele...
E, de repente, desatei em pranto. Era uma crise nervosa. Tinha muita vergonha no intervalo entre os soluços, mas não conseguia contê-los. Ela se assustou.
Que o senhor tem? O que há com o senhor? – gritava ela em grande agitação, andando em volta de mim.
Água, traga-me água, está ali! – balbuciei com voz fraca, aliás, consciente de que poderia perfeitamente passar sem a água e não precisava balbuciar com voz fraca. Mas eu estava representando, para salvar as aparências, embora o ataque fosse verdadeiro.
Ela me trouxe a água, olhando-me meio desnorteada. Nesse instante entrou Apollon com o chá. De repente me pareceu que aquele chá comum e prosaico era terrivelmente inconveniente e miserável depois do que havia acontecido e fiquei ruborizado. Liza olhava para Apollon um pouco assustada. Ele saiu, sem olhar para nós.
Liza, você me despreza? – perguntei, olhando diretamente nos seus olhos e tremendo de impaciência por saber o que ela estava pensando.
Ela ficou embaraçada e não soube o que responder.
Beba o chá! – disse eu com raiva.
Estava furioso comigo, mas obviamente quem deveria pagar era ela. De repente ferveu no meu peito uma raiva terrível dela; creio que seria capaz de matá-la naquele instante. Para me vingar, jurei mentalmente ficar o tempo todo sem lhe dirigir nem uma palavra. “Ela é a causa de tudo isto”, pensava.
Nosso silêncio já durava uns cinco minutos. O chá continuava sobre a mesa; não o havíamos tocado. Cheguei ao ponto de deliberadamente não querer começar a beber, para com isso causar-lhe mais mal-estar ainda, e ela estava sem jeito de ser a primeira a beber. Olhou para mim várias vezes, triste e perplexa. Eu permanecia teimosamente calado. O principal mártir era evidentemente eu mesmo, porque estava plenamente consciente de toda a baixeza asquerosa daquela minha raiva estúpida, e ao mesmo tempo não conseguia absolutamente me dominar.
Eu quero ir embora... definitivamente... daquele lugar – começou ela, tentando de algum modo quebrar o silêncio. Mas coitada! Era justamente sobre isso que ela não deveria ter começado a falar, naquele momento por si só idiota, e para uma pessoa por si só estúpida como eu. Meu coração até doeu de pena de sua inabilidade e sua sinceridade desnecessária. Mas algo monstruoso esmagou imediatamente toda a minha compaixão e até me provocou ainda mais: pouco me importava se o mundo acabasse! Passaram-se mais cinco minutos.
Eu não vim incomodar o senhor? – começou ela timidamente, com uma voz quase inaudível, e começou a levantar-se.
Mas assim que percebi esse primeiro lampejo de dignidade ofendida, estremeci de raiva e explodi.
Para que você veio à minha casa, diga você para mim, por favor? – comecei a falar, perdendo o fôlego e sem nem prestar atenção à ordem lógica das palavras. Queria dizer tudo de uma vez, num só jato. Nem me preocupei em como iria começar.
Para que veio? Responda! Responda! – gritava quase fora de mim. – Pois vou lhe dizer, minha cara, por que você veio. Você veio porque naquele dia eu lhe disse palavras de compaixão. E aí você ficou enternecida e quis ouvir mais “palavras de compaixão”. Pois fique sabendo que naquele dia eu estava rindo de você. E agora também estou rindo. Por que está tremendo? É, eu estava rindo! Antes de ir para lá eu tinha sido ofendido, num jantar, por aquelas pessoas que chegaram antes de mim. Fui até lá para espancar um deles, um oficial, mas não pude, não o encontrei; eu precisava descarregar minha humilhação em alguém, você apareceu, eu despejei meu ódio sobre você, zombei de você. Fui humilhado, então também quis humilhar; fui pisado como se eu fosse um trapo e quis demonstrar o meu poder... Foi isso o que aconteceu, e você pensou que eu fui lá para salvá-la, não foi? Não foi o que você pensou? Não foi?
Eu sabia que ela poderia se confundir e não compreender alguns detalhes, mas também sabia que ela compreenderia perfeitamente o essencial. Foi o que aconteceu. Ela ficou branca como um lençol, quis dizer alguma coisa, seus lábios se contraíram dolorosamente, mas, como se tivesse sido derrubada por um golpe de machado, caiu sobre a cadeira. Depois ficou o tempo todo ouvindo-me de boca aberta, olhos arregalados e tremendo de terror. O cinismo de minhas palavras deixou-a esmagada...
Salvar! – continuei, levantando-me de um salto e correndo diante dela pelo quarto, para frente e para trás. – Salvar de quê? E talvez eu seja pior do que você. Por que você não me atirou na cara naquela hora, quando eu estava lhe fazendo um sermão: “E você, para que veio aqui? Veio pregar moral, é?” Poder, poder era o que eu queria naquele dia. O importante era o jogo, levá-la às lágrimas, humilhar você, levá-la à histeria – era disso que eu precisava naquele dia! Mas eu mesmo não consegui resistir, porque sou um patife, eu me assustei e só Deus sabe por que eu lhe dei bobamente meu endereço. E depois, antes mesmo de chegar em casa, eu já estava xingando você violentamente por causa desse endereço. Estava com ódio de você porque lhe menti naquele dia. Porque para mim o que importa é brincar com as palavras, é sonhar, e quanto à realidade, sabe do que preciso? De que vocês todos vão para o diabo! É isso aí! O que eu quero é tranquilidade. Sou capaz de vender agora mesmo o mundo inteiro por um copeque para que me deixem em paz. Entre o mundo acabar e eu beber o meu chá, eu quero que o mundo se dane, quero ter sempre o meu chá para beber. Você sabia disso ou não? Pois eu sabia que era canalha, patife, egoísta, preguiçoso. Nestes três últimos dias fiquei tremendo de medo de que você viesse. E sabe o que mais me preocupava nesses três dias? Que eu tinha surgido diante de você como um herói, e aqui de repente você me veria neste roupãozinho rasgado, como um mendigo miserável. Eu lhe disse há pouco que não me envergonho de minha pobreza; pois saiba que me envergonho, é do que eu mais me envergonho, é do que eu mais tenho medo, mais do que se eu fosse um ladrão, porque sou tão vaidoso, que é como se tivessem arrancado a minha pele e eu sentisse dor até com o ar. Mas será possível que você ainda não entendeu que eu jamais a perdoarei por você ter me surpreendido neste roupãozinho no momento em que eu me atirava como um cãozinho raivoso sobre Apollon? O salvador, o recente herói, se atira como um vira-latas ordinário e desgrenhado sobre o seu criado, e este fica rindo dele! E as lágrimas que eu há pouco não consegui conter diante de você, parecendo uma mulherzinha envergonhada, nunca lhe perdoarei! E estas coisas que estou confessando a você agora, também nunca lhe perdoarei por elas! Você, unicamente você deverá responder por tudo isso, porque foi você que surgiu na minha frente, porque sou um canalha, porque sou o mais sórdido, o mais mesquinho, o mais tolo, o mais invejoso de todos os vermes da terra, que não são nem um pouco melhores do que eu, mas que, sabe-se lá por que, nunca ficam constrangidos. Enquanto eu, toda a vida vou receber petelecos dos mais reles insetos, esta é a minha característica! Que me importa se você não vai entender nada do que estou dizendo! E que me importa, que tenho a ver com você e com o fato de que você está ou não se destruindo naquele lugar? Você entende que agora, depois que eu lhe disse isso, vou odiá-la porque você ficou aí ouvindo? Pois uma pessoa só se abre assim uma vez na vida, e isso se estiver histérica!... Que mais você quer? Por que você, depois de tudo isso, ainda está plantada na minha frente, por que me tortura, por que não vai embora?
Mas então de repente aconteceu uma coisa estranha.
Eu estava a tal ponto acostumado a pensar e a fantasiar tudo como nos livros e a imaginar que tudo no mundo era igual ao que eu antes havia criado nos meus sonhos, que nem entendi de imediato aquela coisa estranha. O fato foi o seguinte: Liza, que eu havia humilhado e esmagado, compreendeu muito mais do que eu poderia imaginar. De tudo a que assistira, ela compreendeu aquilo que as mulheres sempre compreendem se amam com sinceridade: ela percebeu que eu era infeliz.
A humilhação e o medo estampados no seu rosto foram substituídos inicialmente por uma perplexidade amargurada. E quando comecei a dizer que eu era um canalha, um patife, e as lágrimas rolaram dos meus olhos (eu havia pronunciado toda aquela tirada por entre lágrimas), seu rosto foi todo tomado por uma espécie de convulsão. Quis levantar-se e me interromper. Quando terminei, ela não prestou atenção aos meus berros de “Por que está aqui, por que não vai embora?!”; ao contrário, compreendeu que devia estar sendo muito difícil para mim dizer aquelas coisas. Além disso, a coitada estava completamente intimidada; ela se considerava infinitamente inferior a mim; como ela poderia ficar com raiva ou ofendida? De repente saltou da cadeira como num impulso incontrolável e, querendo precipitar-se para mim, mas ainda tímida e sem ousar sair do lugar, ela me estendeu os braços... Nesse momento senti um aperto no coração. Então, repentinamente, ela se atirou para mim, enlaçou meu pescoço com os braços e chorou. Eu também não resisti e solucei de uma maneira como nunca havia soluçado antes...
Não me permitem... Eu não posso ser... bom! – mal consegui pronunciar, e depois fui até o divã, caí de bruços sobre ele e fiquei quinze minutos soluçando numa verdadeira histeria. Ela me abraçou e ficou ali colada em mim, como que imobilizada naquele abraço.
Mas o fato é que de algum modo o ataque histérico teria de terminar. Então (o que estou escrevendo é uma verdade asquerosa), deitado de bruços no divã, tenso e com o rosto enfiado numa miserável almofada de couro, pouco a pouco, como se estivesse longe dali, involuntariamente e de maneira incontrolável, comecei a perceber que naquele momento eu ficaria encabulado de levantar a cabeça e olhar Liza nos olhos. Do que eu tinha vergonha? Não sei, mas tinha. Na minha cabeça transtornada passou também a idéia de que os papéis agora estavam definitivamente invertidos, que ela é que era a heroína, enquanto eu era exatamente igual àquela criatura humilhada e esmagada que se mostrara diante de mim naquela noite – quatro dias antes... E tudo isso me passou pela cabeça naquele momento em que eu permaneci deitado de bruços no divã!
Meu Deus! Será que naquele momento eu tinha inveja dela?
Não sei, não consegui ainda solucionar isso, e naquele instante ainda menos do que agora eu tinha condições de entender o que se passava comigo. Sem tirania e poder sobre alguém eu não posso viver... Mas... mas, com racionalizações, não se pode explicar nada e, consequentemente, é inútil racionalizar.
No entanto, consegui me dominar e levantei a cabeça, pois em alguma hora eu teria de levantá-la... E aí... Estou até hoje convencido de que, justamente porque eu tinha vergonha de olhar para ela, no meu coração de repente acendeu-se e pôs-se a arder outro sentimento... o sentimento de domínio e posse. Meus olhos brilharam de paixão e eu apertei fortemente suas mãos. Como eu a odiava e me sentia atraído por ela naquele instante! Um sentimento reforçava o outro. Parecia quase uma vingança! Seu rosto a princípio expressou uma certa perplexidade, próxima do medo, mas apenas por um instante. Ela me abraçou com ardor e arrebatamento.

Dostoiévski, in Notas do Subsolo

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