O
grupo de Whatsapp chamava-se Almoço de Páscoa e comunicava algo
como “as quiches são com a gente, as saladas são com a gente, o
resto é com vocês”. O resto! Estava na cara que era
putaria, né? Se fosse vinho, diriam “vinho”. Se fosse sobremesa,
diriam “sobremesa”. O resto… era putaria. Vesti saia comprida
rodada porque estava bem naquela semana, estava solar. Quando fico
solar, acredito que posso ser um pouco hippie. Depois passa (graças
a Deus). Eu tinha um namorado treze anos mais velho e isso prometia
uma vida maravilhosa para mim. Uma vida cinco em um. Namorado mas
também pai, professor, mestre e mentor. O namoro duraria cinco
semanas porque, eu viria então a descobrir, ele era chato e tinha
problemas de intestino.
Eu
havia parado com o antidepressivo Escitalopram que, apesar do nome,
não me deixava ficar excitada nem com sessenta e sete casais
transando ao mesmo tempo. E não digo isso porque estou inventando um
número qualquer, trata-se de um vídeo pornô japonês que esse
mesmo grupo Almoço de Páscoa tinha mandado para mim semanas antes.
Eram sessenta e sete casais japoneses transando ao mesmo tempo num
parque ensolarado. Fazia um ano que esse grupo tentava me chamar para
um desses almoços, sempre com um papo de “galera do cinema
descolada, pra falar sobre a vida”, mas eu nunca ia porque não
conhecia ninguém (e porque as pessoas de cinema que estão de fato
fazendo cinema não perdem tempo andando com gente descolada, e para
falar sobre a vida eu só acreditava pagando a alguém que tivesse
estudado muito).
Mas,
como dizia, eu tinha parado com o antidepressivo fazia cerca de três
meses, tempo suficiente para que não tivesse sobrado nadinha no meu
sangue. E estava numa fase estranhíssima, sentindo tesão até em
boneco de posto.
Parar
de tomar um remédio que havia me transmutado num legume sexual me
devolvia agora um ânimo juvenil que nem na mais tenra adolescência
experimentei. Eu era um garoto de quinze anos que dividia as emoções
do mundo entre “livro merda de geografia prova amanhã” e
“qualquer pele encostada em mim me fará contorcer de amor”. Foi
quando por fim topei ver qual era a da galera das quiches e saladas.
Magra, entediada de morte com a vida sexual comezinha da moça urbana
falsamente ousada, e pronta para viver aquele momento.
Ao
chegar ao grande evento, uma decepção: as meninas realmente estavam
na cozinha lavando as saladas. Vestidas. As meninas que ainda
chegariam, realmente trariam quiches. E elas viriam vestidas. E
pretendiam continuar vestidas. O vinho que levei realmente foi
aberto, e “era exatamente o que queria dizer ‘o resto é com
vocês’”. Os rapazes conversavam na varanda sobre “que tipo de
música eletrônica ainda dá pra encarar”, enquanto o mais feinho
deles atacava de DJ usando o Bluetooth do celular. Então era só
isso? Pessoas fofas fazendo amigos e saladas e quiches? Vamos ouvir
sucessos dos anos 1980 e rir “das coisas que lembramos”? Calma,
quando eu menos esperava, a coisa toda começou.
Como
eu consegui entrar na Globo? Mandei só currículo ou fiz alguma
oficina de roteiro lá dentro? E o primeiro filme? Vendi o argumento
ou me encomendaram a partir de uma sinopse? E livro? Que editores eu
conhecia? Eu poderia ler “um livro” da esposa talentosíssima e
depois indicar? Ela não veio hoje, mas mandou dizer que me adora. E
no jornal, quem eram meus contatos? Eu poderia ler os textos do
marido da esposa talentosíssima e indicar? Achei que meu corpo seria
usado de forma louca, perigosa e psiquiatricamente inesquecível, mas
era só uma galera desempregada querendo usar minha agenda. Tem coisa
mais podre e degradante?
Mas
aquilo não ficaria assim. Eu tinha feito laser nos pelos mais
intrínsecos dos grandes lábios, veja, achando que seria uma noite
longa. E os caras vêm me pedir contato profissional? Aquilo
despertou em mim uma sede de vingança ainda maior que a libido
desenfreada com que eu estava tendo de lidar naqueles dias.
Forjei
então o mais sincero amor verdadeiro por todas as pessoas lá
presentes. E comecei a pegar no cabelo delas, no joelho delas. Eram
desempregadinhos tão bonitos, tão cheios de esperança, tão
limpos. Acho que mordi mesmo o ombro de uma das moças, agradecendo a
taça que ela me trouxe. E então propus uma brincadeira. Uma coisa
leve, despretensiosa, só para a gente se conhecer mesmo, todos ali,
na paz de Cristo. Vai que, se eu gostasse de alguém, depois ajudava
na carreira, né?
A
gente viraria a garrafa, como no jogo da verdade, mas, em vez de
“pergunta e responde”, seria “manda e obedece”. Assim: Juju
pede a Maria uma mordiscadinha na biqueta, Maria mordisqueta; Daniel
pede a Maria uma lambidinha libidinosa na orelha, Maria lambelha;
Maria pede a Daniel um tapinha na bunda, Daniel estabunda. Enquanto
ainda estavam tímidos, era eu a dar as ordens que eles dariam. Era
eu a colocar fala na boca daqueles personagens tão bonitos e limpos
e desempregados.
E
assim, tomados por álcool e pela energia inebriante do meu
“descompensamento” químico, os desempregados todos começaram a
transar muito, enquanto eu só observava. Quando “dei por mim”,
estava numa poltroninha e na minha frente, num pobre sofá
branquinho, uma quantidade infinita de possibilidades “buracais”
se expressava. Um dos desempregados tentou me puxar pelo pé, como um
morto que não desiste, mas um braço perdido, do epicentro do amor
amorfo, puxou o desempregado para dentro.
Não
deixei que me tocassem, não deixei que tirassem minha roupa. De mim
não levaram um só número de telefone ou nome de “pessoa
influente”. Nunca li nenhum texto deles. Nunca os indiquei a
ninguém. Como era eu a rodar a garrafa, fiz de um jeito que ela
nunca apontasse para mim. Nas poucas vezes que quase apontou, enganei
a todos, me movendo centímetros ou dando um imperceptível peteleco
na garrafa. Era fácil enganá-los. Tão bonitos e limpos e
desempregados.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
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