sábado, 8 de julho de 2023

O que é arte? | Capítulo VII

Rainha Elizabeth assistindo a uma performance de “As alegres comadres de Windsor” no Globe Theater (1840), de David Scott

Desde a época em que as altas camadas sociais perderam a fé no cristianismo da Igreja, o padrão da arte tem sido a beleza — isto é, o prazer proporcionado pela arte —, e, de acordo com essa visão, tomou forma uma teoria estética entre essas classes, para justificar tal entendimento: a de que o objetivo da arte é a manifestação da beleza. Os partidários dessa teoria, para confirmar sua correção, declaram que ela não foi inventada por eles, que ela jaz na essência das coisas e já fora reconhecida pelos gregos antigos. Mas essa afirmação é totalmente arbitrária e não tem outro fundamento senão o fato de que para os antigos gregos, com seu ideal moral inferior (se comparado ao ideal cristão), a ideia de bem (tò agaθòν) ainda não era nitidamente distinta da ideia de belo (tò kaλ óν).
A mais alta perfeição do bem, não apenas não coincidente com beleza, mas principalmente oposta a ela — que os judeus já conheciam na época de Isaías e que foi plenamente expressa pelo cristianismo —, era totalmente desconhecida dos gregos. Eles pensavam que o belo deve necessariamente ser bom. É verdade que os principais pensadores — Sócrates, Platão, Aristóteles — intuíram que o bem pode não coincidir com a beleza. Sócrates subordinou a beleza ao bem; Platão, para unir as duas ideias, falava de uma beleza espiritual; Aristóteles exigia que a arte afetasse as pessoas moralmente (kaθaqaρiς). Mas mesmo esses pensadores não conseguiram renunciar inteiramente à noção de que a beleza e o bem coincidem.
E, portanto, na língua daquele tempo entrou em uso a palavra composta kaλοκαγαθια (bondade-bela), tendo essa noção combinada como significado.
Os pensadores gregos obviamente começavam a se aproximar do conceito do bem expresso pelo budismo e o cristianismo e se confundiram ao estabelecer relações entre o bem e a beleza. Os juízos de Platão sobre a beleza e o bem estão cheios de contradições. E foi exatamente essa confusão de conceitos que as pessoas do mundo europeu — aquelas que tinham perdido toda a fé — tentaram transformar em lei. Elas queriam provar que essa combinação de beleza e bem jaz na própria essência da matéria e os dois devem coincidir, que a palavra e o conceito καλoκαγαθια (cheio de significado para os gregos, mas sem qualquer significado para um cristão) representa o mais alto ideal da humanidade. Sobre esse mal-entendido se erigiu a nova ciência da estética. E, para justificar essa nova ciência, o ensinamento antigo sobre a arte foi reinterpretado de maneira a fazer parecer que essa ciência inventada também existira entre os gregos.
Na verdade, o raciocínio dos antigos a respeito da arte não lembra o nosso de forma alguma. Assim, Bénard escreve muito corretamente em seu livro sobre a estética de Aristóteles: “Pour qui veut y regarder de près, la théorie du beau et celle de l’art sont tout à fait séparées dans Aristote, comme elles le sont dans Platon et chez leurs successeurs.”
De fato, o raciocínio dos antigos sobre a arte não só não confirma a nossa estética, como praticamente nega seu ensinamento sobre a beleza. E no entanto todos os estetas, de Schassler a Knight, sustentam que a ciência do belo — estética — foi iniciada pelos antigos — Sócrates, Platão, Aristóteles — e supostamente mantida, até certo ponto, pelos epicuristas e estoicistas — Sêneca, Plutarco e até Plotino —, mas, em razão de algum acidente, essa ciência desapareceu de repente no século IV e esteve ausente por 1.500 anos, somente revivida na Alemanha, em 1750, com a teoria de Baumgarten.
Depois de Plotino, diz Schassler, decorreram 15 séculos durante os quais não houve o menor interesse científico no mundo da beleza e da arte. Esses 1.500 anos foram perdidos para a estética e para a elaboração da estrutura erudita dessa ciência.
Na verdade, não foi nada disso. A ciência da estética, a ciência do belo, não desapareceu e não poderia desaparecer, porque nunca existiu. Os gregos, como os outros povos de todos os tempos e lugares, como em qualquer outro assunto, simplesmente consideravam a arte boa quando servia ao bem (tal como o entendiam) e má quando era oposta a esse bem. Eles próprios eram tão pouco desenvolvidos moralmente que pensavam que a beleza e o bem coincidiam. É sobre o retrospecto dessa visão mundial a respeito dos gregos que se erigiu a ciência da estética inventada pelos homens do século XVIII e especialmente transformada em teoria por Baumgarten. Os gregos (como qualquer um pode se convencer ao ler o excelente livro de Bénard sobre Aristóteles e seus seguidores e o livro de Walter sobre Platão) nunca tiveram nenhuma ciência da estética.
As teorias estéticas, e o próprio nome dessa ciência, emergiram há cerca de 150 anos entre as classes ricas do mundo cristão europeu, simultaneamente em várias nações — Itália, Holanda, França, Inglaterra. Seu fundador, seu moldador, aquele que lhe deu forma científica e teórica, foi Baumgarten.
Com pedante exatidão e simetria externas tipicamente alemãs, ele inventou e expôs essa espantosa teoria. E, a despeito de sua extraordinária falta de fundamento, nenhuma outra teoria foi tão adequada ao gosto da multidão instruída, nem jamais foi adotada com tamanha presteza e falta de crítica. Essa teoria se ajustava tão bem ao gosto da alta classe, apesar de sua arbitrariedade e da falta de substância de suas teses, que até hoje ela é repetida pelos cultos e os incultos como se fosse algo indiscutível e evidente.
Habent sua fata libelli pro capite lectoris e especialmente habent sua fata as teorias que vêm do estado de desilusão em que se encontra a sociedade, no meio da qual e para o bem da qual essas teorias são projetadas. Se uma teoria justifica a falsa posição na qual está uma parte da sociedade, por mais infundada e falsa que essa teoria seja, ela será adotada e se tornará a crença daquela parte da sociedade. Assim é, por exemplo, a famosa e totalmente infundada teoria de Malthus, que diz que a população cresce em progressão geométrica, enquanto os recursos alimentares crescem somente em progressão aritmética, o que tem como resultado a superpopulação da Terra. Assim é também a teoria, derivada de Malthus, da seleção e luta pela existência como base do progresso humano. Assim é também a teoria de Marx, agora amplamente disseminada, de que o progresso econômico é inevitável e consiste no engolimento de todos os pequenos empreendimentos privados pelos grandes capitalistas. Por mais infundadas que as teorias desse tipo possam ser, por mais contraditórias que sejam a tudo que a humanidade sabe e reconhece, por mais imorais que possam ser, elas são aceitas em confiança, sem crítica, e são pregadas com entusiasmo exaltado, às vezes por séculos, até que as condições que as justifiquem sejam eliminadas ou o seu absurdo se torne muito óbvio. Assim é, também, a espantosa teoria da trindade de Baumgarten — Bem, Verdade e Beleza —, segundo a qual se revela que o melhor que pode ser feito pela arte dos povos que viveram 1.800 anos de vida cristã é adotar como seu ideal o mesmo que fora sustentado por um pequeno povo semisselvagem e escravagista de dois mil anos atrás, que retratava muito bem corpos humanos nus e construía edifícios agradáveis aos olhos. Ninguém nota nenhuma dessas incongruências. Homens instruídos escrevem longos e vaporosos tratados sobre a beleza como membro da trindade estética: o Belo, o Verdadeiro, o Bom; Das Schöne, das Wahre, das Gute; le Beau, le Vrai, le Bon — com letras maiúsculas — são repetidos por filósofos, estetas, artistas, pessoas comuns, novelistas e panfletistas, e todo mundo parece pensar que ao pronunciar essas palavras sacramentais está falando de algo bastante certo e firme — uma coisa sobre a qual se pode basear um juízo próprio. Na verdade, essas palavras não têm um significado preciso e também impedem que demos sentido preciso para a arte existente. Elas são necessárias apenas para justificar a falsa importância que atribuímos a uma arte que transmite toda espécie de sentimentos, desde que esses sentimentos nos proporcionem prazer.
No momento em que renunciarmos por algum tempo ao hábito de considerar que essa trindade possui a verdade da Trindade religiosa e perguntarmos a nós mesmos o que entendemos como significado das três palavras dessa trindade, ficaremos convencidos sem nenhuma dúvida de quão absolutamente fantástico é unir essas três palavras e conceitos totalmente diferentes e, acima de tudo, desproporcionais.
O bom, o belo e o verdadeiro são colocados no mesmo nível e todos os três conceitos são reconhecidos como fundamentais e metafísicos. E no entanto a realidade não é nada disso.
O bem é o eterno, o objetivo mais alto de nossa vida. Não importa como o entendamos, nossa vida não é senão um esforço em direção ao bem — ou seja, em direção a Deus.
O bem é, de fato, um conceito fundamental que metafisicamente constitui a essência da nossa consciência, um conceito indefinível pela razão.
O bem é aquilo que ninguém pode definir, mas que define tudo o mais.
Mas o belo, se não quisermos nos satisfazer com palavras, mas, sim, falar do que entendemos, o belo não é mais do que aquilo que nos é agradável.
O conceito de beleza não coincide com o de bem, é inclusive oposto a ele, porque o bem, na maioria das vezes, coincide com um triunfo sobre nossas predileções, enquanto a beleza é a base de todas as nossas predileções.
Quanto mais nos damos à beleza, mais distantes estamos do bem. Eu sei que a resposta costumeira a isso é que existe uma beleza moral e espiritual, mas tal alegação é somente um jogo de palavras, pois dizendo beleza espiritual ou moral não queremos dizer senão o bem. A beleza espiritual, ou o bem, na maioria das vezes não só não coincide com o significado usual de beleza, como se opõe a ele.
Quanto à verdade, é ainda menos possível atribuir a esse membro da suposta trindade uma unicidade com o bem ou o belo, nem sequer uma existência independente.
Chamamos verdade somente a correspondência entre a manifestação ou definição de um objeto e a sua essência, ou a compreensão do objeto que é comum a todas as pessoas. E o que é comum aos conceitos de beleza e verdade, por um lado, e ao de bem, por outro?
Os conceitos de beleza e verdade não só não são equivalentes ao de bem, não apenas não partilham uma mesma essência, como nem mesmo coincidem com ele.
A verdade é a correspondência entre a manifestação e a essência do objeto e é, portanto, um meio de atingir o bem, mas a verdade em si mesma não é nem o bem nem o belo e nem mesmo coincide com eles.
Dessa forma, por exemplo, Sócrates e Pascal, assim como muitos outros, consideravam discordante do bem um conhecimento da verdade de objetos inúteis. E quanto à beleza, a verdade nada tem em comum com ela e é, na maior parte das vezes, oposta a ela, porque, ao expor o engano, a verdade destrói a ilusão, a principal condição da beleza.
E, assim, a união arbitrária desses três conceitos desproporcionais e estranhos entre si serviu de base para a espantosa teoria segundo a qual a diferença entre a boa arte, que transmite bons sentimentos, e a arte ruim, que transmite maus sentimentos, foi totalmente obliterada; e uma das mais baixas manifestações da arte, a arte por mero prazer — contra a qual todos os mestres da humanidade alertaram as pessoas —, veio a ser considerada a mais alta. E a arte deixou de ser a coisa importante que deveria ser e se tornou diversão vazia de pessoas ociosas.

Leon Tolstói, in O que é arte?

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