Há
trinta anos, quando ainda era um jovem e porventura esperançoso
escritor já à beira de converter-se em sexagenário, andava eu por
terras de Miranda do Douro onde dava começo à inesquecível
aventura que viria a ser a preparação e a elaboração do livro
Viagem a Portugal. Não era casual este título. Com ele pretendia
que o leitor, logo na primeira página, compreendesse que disso se
tratava, de uma viagem a alguma parte, precisamente Portugal. Para
reforçar no meu próprio espírito essa ideia saí do país por
Monção e, durante uma semana, andei por Galiza e León até que, já
com olhos limpos das imagens costumadas, avancei à descoberta da
terra onde nascera. Lembro-me de ter parado no meio da ponte que une
as duas margens do rio, de um lado, Douro, do outro, Duero, e ter
procurado em vão, ou fingido procurar, a linha de fronteira que,
parecendo separar, une afinal os dois países. Pensei então que uma
boa maneira de começar o livro seria parodiar o famoso Sermão de
santo António aos peixes do Padre António Vieira, dirigindo-me aos
peixes que nadam nas águas do Douro e perguntando-lhes de que lado
se sentiam eles, expressão talvez demasiado óbvia de um ingénuo
sonho de amizade, de companheirismo, de mútua colaboração entre
Portugal e Espanha. Não caiu em saco roto a utópica proposta.
Naquele mesmo lugar do rio, rodeados pela água comum, acabam de
reunir-se os representantes de 175 municípios ribeirinhos de um lado
e do outro para debaterem sobre a criação de um agrupamento capaz
de coordenar acções de desenvolvimento e definir planos viáveis de
futuro. Talvez nenhum dos presentes tenha lido a minha versão do
sermão do Padre António Vieira, mas o espírito do lugar andava a
chamá-los há trinta anos, e eles foram. Bem-vindos todos.
José Saramago, in O caderno
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