terça-feira, 25 de julho de 2023

Douro-Duero (Dia 11 de março de 2009)

Há trinta anos, quando ainda era um jovem e porventura esperançoso escritor já à beira de converter-se em sexagenário, andava eu por terras de Miranda do Douro onde dava começo à inesquecível aventura que viria a ser a preparação e a elaboração do livro Viagem a Portugal. Não era casual este título. Com ele pretendia que o leitor, logo na primeira página, compreendesse que disso se tratava, de uma viagem a alguma parte, precisamente Portugal. Para reforçar no meu próprio espírito essa ideia saí do país por Monção e, durante uma semana, andei por Galiza e León até que, já com olhos limpos das imagens costumadas, avancei à descoberta da terra onde nascera. Lembro-me de ter parado no meio da ponte que une as duas margens do rio, de um lado, Douro, do outro, Duero, e ter procurado em vão, ou fingido procurar, a linha de fronteira que, parecendo separar, une afinal os dois países. Pensei então que uma boa maneira de começar o livro seria parodiar o famoso Sermão de santo António aos peixes do Padre António Vieira, dirigindo-me aos peixes que nadam nas águas do Douro e perguntando-lhes de que lado se sentiam eles, expressão talvez demasiado óbvia de um ingénuo sonho de amizade, de companheirismo, de mútua colaboração entre Portugal e Espanha. Não caiu em saco roto a utópica proposta. Naquele mesmo lugar do rio, rodeados pela água comum, acabam de reunir-se os representantes de 175 municípios ribeirinhos de um lado e do outro para debaterem sobre a criação de um agrupamento capaz de coordenar acções de desenvolvimento e definir planos viáveis de futuro. Talvez nenhum dos presentes tenha lido a minha versão do sermão do Padre António Vieira, mas o espírito do lugar andava a chamá-los há trinta anos, e eles foram. Bem-vindos todos.

José Saramago, in O caderno

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