Thulane
tinha acabado de completar três anos e eu trabalhava numa empresa do
porto. A geração do meu pai foi a última de estivadores antes da
privatização, coisa contra a qual meu pai lutou de forma
contundente. Lembro de acompanhá-lo nas manifestações quando
criança, para repetir o que os sindicalistas gritavam: “O porto é
do povo, o porto é do povo!”. Não fazia a mínima ideia do que
aquilo significava, mas meu pai sempre fez questão de nos envolver
politicamente.
Adorava
ir às manifestações principalmente porque, ao final, meu pai nos
levava ao Pastel Carioca, uma pastelaria tradicional no centro de
Santos. Também guardo memórias carinhosas das idas ao Sindicato dos
Estivadores para ajudar a envelopar informes sobre a Chapa da qual
meu pai era diretor, ou das idas ao Partido Comunista. Apesar de
algumas tarefas serem chatas para uma criança, tudo acabaria em
pastel depois.
Adorava
quando as pessoas me abordavam na rua e perguntavam: “Você é a
filha do Joaquinzinho, diretor do sindicato?”, e eu sempre
respondia orgulhosamente que sim. Trabalhar ali no porto me trazia
muitas lembranças.
Entre
uma busca e outra aqui na internet, descobri que haviam construído
um campus de humanas da Universidade Federal de São Paulo. Ficava em
Guarulhos, mas achei que podia ser interessante tentar, sobretudo
quando vi que havia curso de Filosofia. Descobrir aquele curso foi
como despertar. Lembrei das vezes em que meu pai leu livros de
filosofia pra mim, da estante velha de mogno que ficava em seu
quarto, das muitas obras que fui obrigada a ler. Lembrei que eu
gostava de estudar, dos anos em que trabalhei na Casa de Cultura da
Mulher Negra, uma organização feminista negra, um divisor de águas
na minha vida. Também me veio à memória a biblioteca Carolina
Maria de Jesus, com os livros de Bell Hooks e os artigos de Sueli
Carneiro. Fui invadida por aquele mesmo sentimento que tive quando
ganhei As novas vestes do rei do meu pai. Olhar aquele aviso de
inscrição para o vestibular foi como ver uma faísca de algo que eu
já havia sido.
Lembro
exatamente que o prazo final de inscrição seria na sexta-feira
daquela semana. Nos meus horários de almoço, namorava aquela
informação. A sexta-feira chegou e, apesar de ter ensaiado ir ao
banco no meu horário de almoço para pagar a inscrição, tive medo.
Terminei o expediente, bati o ponto e fui pra casa. Passei o fim de
semana sonhando com aquela informação enquanto cozinhava e ensinava
minha filha a usar o banheiro.
Na
segunda-feira seguinte, resignada, voltei ao trabalho. Evitei navegar
na internet, não queria ter que me confrontar com a minha fraqueza,
mas em um momento livre voltei ao site da universidade. Qual foi
minha surpresa quando vi que as inscrições haviam sido prorrogadas
mais uma semana. Só podia ser um sinal, pensei. Mesmo assim, passei
a semana apreensiva, questionando se deveria ou não me inscrever.
Quando
a sexta-feira chegou, eu precisava novamente tomar uma decisão.
Imprimi o boleto sem que os outros funcionários vissem — não era
permitido imprimir coisas pessoais — e saí para almoçar. Na
volta, tomei coragem e passei no banco. O valor que eu tinha na conta
era exatamente o valor da inscrição. Paguei, não disse nada a
ninguém, e aguardei o dia da prova. Era uma época pré-Enem, seriam
três dias de provas e eu precisaria me ausentar do trabalho.
Conversei com o meu chefe e ele me liberou no período da tarde
durante os três dias seguintes. Em casa, eu disse que havia ganhado
a inscrição do pessoal da Educafro, cursinho pré-vestibular para
jovens de comunidades periféricas do qual fui coordenadora de núcleo
por anos. Minha justificativa era que eu iria fazer a prova para
incentivar os alunos. Eu sabia que não poderia dizer que tinha
intenção real de cursar Filosofia em Guarulhos, e não queria
adiantar problemas — eu poderia não passar e essa conversa nunca
precisaria ocorrer. Fazia mais de dez anos que havia terminado o
ensino médio e se zerasse alguma questão, seria automaticamente
desclassificada.
Até
aquele momento, eu tinha contado sobre meus planos para três
pessoas: Vivi, Cleide e Jaque, minhas companheiras de trabalho. Eu
era secretária do diretor da empresa e de dois gerentes. Vivi
trabalhava no almoxarifado e Cleide e Jaque na limpeza. Nós nos
tornamos inseparáveis, saíamos juntas, sempre sentávamos na mesma
mesa nos eventos da empresa. Elas foram meu porto seguro naquele
momento, me incentivando, dizendo que eu deveria fazer o curso caso
passasse. No dia em que o resultado seria divulgado, elas apareciam
na minha sala de vez em quando para me perguntar se já havia saído.
Com o coração disparado, acessei o site da universidade. Ao ver meu
nome na lista de aprovados, tive uma sensação ambígua: fiquei
feliz por ter conseguido, mas ao mesmo tempo nervosa, temia não
poder fazer o curso. Enquanto Vivi, Cleide e Jaque comemoravam, eu
pensava: “Passei, e agora?”.
Eu
tinha alguns dias para me decidir, até a data da matrícula. Nesses
dias, quando eu saía do trabalho, eu ia caminhar pela orla da praia,
perto do mar. Ficava pensando que se vocês fossem vivas, não me
deixariam sequer cogitar não estudar, brigariam pra ver quem
cuidaria da Thulane. Você foi empregada doméstica, minha mãe foi
empregada doméstica. Minha entrada na faculdade de Filosofia
romperia com um ciclo de exclusão.
Chorei
muitas vezes enquanto passeava olhando o mar, querendo que minhas
lágrimas se confundissem com o infinito.
Um
dia, fui levar minha filha ao Aquário. Enquanto ela corria encantada
vendo os peixes e algas marinhas, eu pensava em qual decisão tomar.
Em dado momento, avistei as arraias em um aquário muito grande.
Enormes e belas, nadando lindamente. Fiquei hipnotizada por alguns
minutos assistindo àquela cena, encantada com as grandes barbatanas
que pareciam asas. Enquanto nadavam, pareciam voar. Após um tempo,
concluí que, apesar da beleza do ato, por mais que o nado simulasse
um lindo voo, nas condições em que se encontravam elas somente
poderiam voar dentro das dimensões do aquário. Havia quem as
alimentasse, quem cuidasse delas, e isso poderia fazê-las acreditar
que estavam seguras, no melhor lugar possível. Mas o lugar delas era
o mar.
No
dia que tomei a decisão, lembro de ter dito em casa: “Minha avó
não teve oportunidade de estudar, minha mãe não teve oportunidade
de estudar. Eu estou quebrando esse ciclo agora!”. De alguma
maneira, sei que vocês estavam ali comigo, me encorajando a tomar
uma das melhores decisões na minha vida, para espanto daqueles que
julgavam que era incompatível ser mãe e estudar numa outra cidade —
cheguei a ouvir de uma pessoa da família do Donald que eu já tinha
provado que era inteligente ao passar, e não precisava ir estudar.
O
próximo passo seria contar no trabalho. Fiquei ensaiando idas e
vindas ao escritório do gerente. Até que um dia, Vivi me olhou e
disse: “Chega, Djamila, você vai contar agora”. Nervosa, fui até
ele. Contei dos meus planos, perguntei se ele poderia me mandar
embora para que eu recebesse seguro-desemprego, porque era
fundamental eu conseguir me sustentar, ao menos nos primeiros meses.
O gerente disse que se eu fosse estudar Logística, ele certamente
poderia me ajudar, pois eu estaria no ramo da empresa. Mas por que
Filosofia? Eu iria passar fome e teria que vender brincos na praia
para sobreviver, ele vaticinou. “É um sonho sem sentido. Veja, meu
sonho era ser médico, mas não consegui realizar, então cursei
Administração de Empresas e hoje trabalho aqui. Nem sempre é
possível fazer o que se quer.”
Essa
última frase soou como uma afronta. Como se eu não soubesse, como
se as mulheres da minha família não soubessem, como o fato de vir
de uma linhagem de empregadas domésticas não tivesse me ensinado
que não podemos fazer o que a gente quer. Minha mãe gostaria de ter
sido jogadora de basquete, você, eu não sei, vó, não tive a
oportunidade de perguntar, mas eu tenho certeza de que você não
gostaria de ter tido sua infância roubada para trabalhar fora. Como
se as pessoas negras, historicamente, não soubessem que não é
possível fazer o que se quer por conta do racismo, que mata não
apenas sonhos, mas vidas. Ele, um homem branco privilegiado, cujo
rosto continha os traços do poder, estava me dizendo que não era
possível fazer o que eu queria. Minha vontade foi responder: “Ora,
se você, mesmo privilegiado, não conseguiu fazer o que queria, o
problema é seu, não acha? Por que quer democratizar frustações?”.
Engoli
o meu ímpeto típico de dona Erani e, com um sorriso falso, disse
que não me importaria de vender brincos na praia. Ele não quis me
mandar embora, disse que eu precisava treinar uma nova pessoa para o
meu lugar e que, por ora, eu poderia sair do trabalho mais cedo, às
17h, para ir à faculdade. O que ele não havia entendido é que a
faculdade ficava a três horas e meia de Santos.
Fiz
isso nos primeiros meses, e você pode imaginar o meu cansaço.
Chegava em Santos de madrugada, acordava às 6h, levava minha filha
para a escola, ia trabalhar, saía às 17h, chegava na faculdade às
20h30, 21h, para começar tudo outra vez. Até que um dia, ao chegar
na faculdade mais uma vez na hora do intervalo e perceber que não
estava entendendo nada, pegando somente a parte final das aulas,
desabei.
Estava
me sentindo burra, não compreendia o que meus professores diziam,
não conseguia acompanhar as aulas e entendi que precisava me dedicar
inteiramente; era preciso sair do trabalho. Como o gerente se recusou
a me mandar embora, pedi demissão. Eu só receberia o mês
trabalhado e teria que me virar. Em casa, não foi fácil. Apesar de
contrariado, Donald me ajudou. Passei a morar com Dara em São Paulo
durante a semana e voltava às sextas-feiras para Santos, pois sempre
tínhamos uma janela de aulas. Geralmente, eu ia às terças e
voltava às sextas.
Fui
obrigada a ouvir muitos absurdos de familiares e colegas de
faculdade. Ninguém hesitava em dizer que eu havia “abandonado”
minha filha com o pai — como se ele não fosse também responsável
por ela. Também havia a pressão de ser a única aluna negra da
turma, e intimidada por estar em um lugar feito para expulsar pessoas
como eu.
Quando
Thulane chorava de saudade de mim, faziam questão de me avisar em
alto e bom som, e meu coração se apertava ainda mais. Como ler
Prolegômenos de Kant consumida pela culpa? Até que um dia,
no apartamento da minha irmã, comecei a chorar, pensando que eu era
uma mãe ruim, que estava sendo egoísta. Dara olhou fundo nos meus
olhos e falou com a voz firme, quase me dando uma bronca: “Para de
chorar! Você está estudando, você não abandonou sua filha. Se a
mãe fosse viva daria dois tapas na sua cara pra você acordar!”.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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