sexta-feira, 7 de julho de 2023

Cartas na Rua | 16

Certa manhã eu organizava as cartas ao lado de G.G. Era assim que o chamavam: G.G. Seu verdadeiro nome era George Green. Mas há anos que o chamavam simplesmente de G.G., e depois de um tempo o apelido lhe caíra bem. Ele trabalhava como carteiro desde os seus vinte anos e agora estava com sessenta e muitos. Sua voz tinha sumido. Ele não falava. Grasnava. E quando grasnava, não dizia muita coisa. Não gostavam dele, mas também não chegavam a desgostar. Apenas estava ali. Seu rosto tinha se enrugado de modo a formar estranhos vincos e montículos de carne nada atraentes. Nenhuma luz irradiava de seu rosto. Não era mais que um velho camarada, endurecido pelo tempo, que tinha cumprido o seu trabalho: G.G. Os olhos pareciam pedaços mortos de argila socados nos globos oculares. O melhor que se podia fazer era não pensar nele, nem sequer olhá-lo.
Só que G.G., sendo já um veterano, tinha uma das rotas mais fáceis, bem no limite do bairro rico. De fato, podia-se chamar de bairro rico. Embora as casas fossem velhas, eram grandes, a maioria com dois andares. Jardins amplos, aparados, cultivados e verdejantes graças ao trabalho de jardineiros japoneses. Algumas estrelas de cinema viviam por ali. Um cartunista famoso. Um escritor de best-sellers. Dois ex-governadores. Ninguém vinha falar com você naquela área. Não se via uma viva alma na região. A única vez em que você avistava alguém era no começo da rota onde havia casas menos caras, e ali as crianças incomodavam o cara um bocado. Quero dizer, G.G. era um solteirão. E tinha um apito. Ao começar sua rota, permanecia ereto e rijo, empunhava o apito, um bem grande, e o soprava, perdigotos voando em todas as direções. Isso era para as crianças saberem que ele estava lá. Ele trazia doces para elas. E elas vinham correndo, e ele ia distribuindo os doces à medida que descia a rua. O bom e velho G.G.
Soube dos doces na primeira vez em que fiz a rota. O Stone não gostava de me dar uma rota tão fácil, mas às vezes ele não tinha como evitar. Então eu estava andando e um garoto apareceu e me perguntou:
Ei, cadê meu doce?
E eu disse:
Que doce, garoto?
E o garoto respondeu:
Meu doce! Quero meu doce!
Escute, garoto — eu disse —, você deve estar louco. Sua mãe deixa você ficar andando por aí à toa?
O garoto me olhou de um jeito estranho.


Mas um dia G.G. se encrencou. Bom e velho G.G. Ele conheceu uma nova garotinha na vizinhança. E deu a ela alguns doces. E disse:
Nossa, você é uma menininha muito bonita! Gostaria que fosse minha filhinha!
A mãe tinha ouvido a conversa da janela e saiu correndo e gritando porta afora, acusando G.G. de molestar crianças. Ela não sabia nada sobre G.G., de modo que, quando o viu dar doces à menina e depois lhe dizer aquelas coisas, aquilo foi demais para ela.
Bom e velho G.G. Acusado de molestar crianças.
Ao entrar, ouvi O Stone ao telefone, tentando explicar à mãe da menina que G.G. era um homem honrado. G.G. estava parado em frente à sua caixa, transfigurado.
Assim que O Stone desligou, eu lhe disse:
Você não devia dar bola para essa mulher. A mente dela é suja. Metade das mães na América, com suas grandes e preciosas bocetas e suas preciosas filhinhas, metade das mães na América tem a mente suja. Diga a ela para enfiar no rabo a denúncia. G.G. não consegue nem ficar de pau duro, você sabe disso.
O Stone balançou a cabeça.
Não, o público é dinamite. Eles são dinamite!
Foi tudo o que conseguiu dizer. Eu já tinha visto O Stone antes — fazendo poses e mendigando e explicando tudo nos mínimos detalhes a cada débil mental que telefonava…

Eu distribuía a correspondência próximo a G.G. na rota 501, que não era das piores. Eu tinha que lutar para conseguir entregar as cartas a tempo, mas pelo menos era possível, e isso me dava alguma esperança.
Embora G.G. conhecesse de cor seu programa, suas mãos estavam mais vagarosas. Simplesmente, tinha entregado cartas demais em sua vida — até mesmo seu corpo insensibilizado se revoltava afinal. Várias vezes durante a manhã o vi fraquejar. Ele parava e balançava, entrava numa espécie de transe, então voltava à realidade e enfiava mais algumas cartas. Em particular, eu não era apegado ao cara. Sua vida não tinha sido uma vida de bravura e ele tinha se transformado mais ou menos num monte de merda. Mas cada vez que ele hesitava, alguma coisa se contraía dentro de mim. Era como um cavalo fiel que já não pode mais seguir em frente. Ou um velho carro, que numa bela manhã já não pegará mais.
O lote de cartas estava pesado e, enquanto observava G.G., senti calafrios da morte. Pela primeira vez em quarenta anos ele poderia perder o turno da manhã! Para um homem tão orgulhoso de seu trabalho como G.G., aquilo poderia ser uma tragédia. Eu já perdera vários turnos matinais e tinha de levar os sacos até as caixas no meu próprio carro, mas a minha postura era ligeiramente diferente.
Ele fraquejou de novo.
Deus Todo-Poderoso, pensei, será que ninguém além de mim percebe isso?
Olhei em volta, ninguém dava a mínima. Todos professavam, uma vez ou outra, gostar dele. “G.G. é um cara bacana.” Só que o “velho bacana” estava afundando e ninguém estava nem aí. Por fim, eu tinha menos cartas à minha frente do que G.G.
Quem sabe pudesse ajudá-lo com as revistas, pensei. Mas um funcionário veio e despejou mais cartas à minha frente, e eu estava novamente parelho com G.G. Estávamos os dois novamente atulhados. Hesitei por um momento, apertei os dentes, estiquei as pernas, curvei-me como um cara que tivesse levado um soco violento, e despejei toda aquela massa de cartas lá dentro.
Dois minutos antes do fim do expediente, G.G. e eu tínhamos nossa correspondência toda arrumada, nossos maços classificados de acordo com a rota e ensacados, a correspondência aérea pronta. Ambos íamos conseguir. Eu tinha me preocupado por nada. Então O Stone apareceu. Trazia dois fardos de circulares. Deu um ao G.G., outro para mim.
Deem um jeito de incluí-las na expedição — ele disse, e se afastou.
O Stone sabia que era impossível arrumar as circulares e ensacá-las a tempo de que fossem entregues. Cortei, extenuado, os barbantes que amarravam as circulares e comecei a ensacá-las. G.G. ficou sentado ali, olhando para o seu fardo de circulares.
Então deixou pender a cabeça, enfiou-a entre os braços e começou a chorar baixinho.
Eu não conseguia acreditar.
Olhei em volta.
Os outros carteiros não estavam olhando para G.G. Ocupavam-se com suas próprias cartas, retirando algumas, preparando os maços, conversando uns com os outros, rindo.
Ei — chamei duas vezes —, ei!
Mas eles não olhavam para G.G.
Andei até ele. Toquei no seu braço:
G.G. — eu disse —, que posso fazer por você?
Ele pulou em seu lugar, pondo-se de pé, subiu as escadas até o vestiário masculino. Fiquei olhando-o se afastar. Ninguém pareceu reparar naquilo. Ensaquei mais umas cartas, depois subi as escadas eu mesmo.
Lá estava ele, a cabeça enterrada entre os braços numa das mesas. Só que agora não chorava mais baixinho. Soluçava e tremia. Todo o seu corpo era percorrido por espasmos. Ele não conseguia controlá-los.
Desci as escadas correndo, passei por todos os carteiros e alcancei a mesa do Stone.
Ei, ei, Stone! Jesus Cristo, Stone!
O que há? — ele perguntou.
G.G. pifou! E ninguém se importa! Ele está lá em cima chorando! Precisa de ajuda!
Quem está cuidando da rota dele?
Quem se importa com essa merda! Estou lhe dizendo, ele está mal! Precisa de ajuda!
Preciso encontrar alguém para cobrir a rota dele!
O Stone levantou de sua mesa, deu uma olhada nos carteiros, como se pudesse encontrar alguém sem fazer nada. Depois se meteu de novo em sua mesa.
Olhe, Stone, alguém tem que levar esse homem pra casa. Diga-me onde ele mora e eu mesmo o levo para casa, neste instante! Depois eu me encarrego dessa rota maldita.
O Stone me olhou:
Quem está cuidando da sua caixa?
Que se foda a caixa!
VÁ CUIDAR DA SUA CAIXA!
Começou em seguida a falar com outro supervisor no telefone:
Alô, Eddie! Escute, preciso de um homem por aqui…
Naquele dia, não haveria doces para as crianças. Voltei ao meu lugar. Todos os carteiros tinham saído. Comecei a selar as circulares. Sobre a caixa de G.G. estava o fardo de circulares. Eu tinha ficado mais uma vez para trás no cronograma. Nenhuma entrega. Quando voltei atrasado naquela tarde, O Stone me pôs no relatório.
Nunca mais voltei a ver o G.G. Ninguém soube o que aconteceu com ele. Ninguém voltou a mencionar seu nome. O “cara bacana”. O homem dedicado. Degolado sobre um fardo de circulares de um supermercado local — com a oferta do dia: uma caixa de sabão em pó de nome pomposo grátis, com o cupom, em qualquer compra acima de três dólares.

Charles Bukowski, in Cartas na Rua

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