segunda-feira, 17 de julho de 2023

As rãs | 7.


No segundo semestre de 1960, pouco tempo depois de nossa degustação de carvão, divulgou-se a notícia de que minha tia estava prestes a se casar com o piloto. Minha tia-avó veio até o lado de cá do muro para discutir com minha mãe sobre o dote. As duas decidiram derrubar a árvore centenária que crescia ao pé do muro e contratar o carpinteiro Fan, o melhor de toda a vila, para fazer móveis com a madeira dela. Cheguei a ver meu pai e o carpinteiro tirando as medidas da árvore, que, assustada com o destino fatal que a esperava, agitava os galhos e farfalhava as folhas com voz de choro.
Mas o assunto morreu sem mais novidades e minha tia sumiu por um bom tempo. Fui farejar uma explicação na casa de minha tia-avó, que me expulsou sem piedade com a bengala. De repente, percebi que minha tia-avó estava tão envelhecida como as velhas bruxas das lendas.
Na manhã em que caiu a primeira neve daquele ano, o sol estava especialmente vermelho. Usávamos sapatos de palha para ir à escola e sentíamos muito frio nos pés e nas mãos. Corríamos pelo pátio, gritando, para tentar nos aquecer. De repente, veio do ar um rugido assustador. Olhamos para cima boquiabertos e vimos uma criatura descomunal, de cor vermelho-escura, que vinha arrastando fumaça preta, esbugalhava um par de olhos rubros, arreganhava uns dentes enormes e brancos, seu corpanzil tremia inteiro e se lançava em nossa direção. É um avião, caramba, um avião! Será que vai pousar no nosso pátio?
Nunca tínhamos visto um avião tão de perto. O vento de suas asas saiu levantando penas de galinha e folhas secas do chão. Seria ótimo se pudesse aterrissar no pátio, assim poderíamos olhá-lo de perto, tocá-lo com as mãos e, com sorte, quem sabe até nos deixariam brincar dentro da sua barriga, e o piloto nos contaria histórias de batalha, se pedíssemos. Ele poderia ser camarada de armas do futuro marido da minha tia. Não. O caça J-5 do meu futuro tio era muito mais bonito do que aquele negócio preto. Logo, quem pilotava aquele troço desajeitado não poderia ser companheiro de armas do meu tio. Mas, pensando bem, pilotar um avião desses também não é para qualquer um, não é mesmo? Quem é capaz de fazer um pedaço de aço tão pesado levantar voo é um herói, não é? Não vi o rosto do piloto, mas muitos alunos juraram tê-lo visto pelo vidro da carlinga. Aquele avião, que tinha certeza de que ia pousar bem ao nosso lado, levantou o nariz, relutante, e deu uma guinada para a direita. Raspou a barriga na copa do álamo a leste da aldeia e mergulhou na imensidão do trigal. Ouvimos um estrondo, mais forte e retumbante que o estrondo sônico da outra vez. Sentimos o chão tremer sob os nossos pés, os ouvidos zuniram e vimos uma porção de estrelas douradas. Logo em seguida, subiu uma grossa coluna de fumaça e labaredas vermelhas, e o sol de repente ficou roxo. Nesse momento, veio um odor sufocante que não deixava ninguém respirar.
Não sei quanto tempo demorou para que a gente acordasse do transe. Corremos para a estrada na entrada da aldeia e sentimos um bafo quente. O avião se partira em vários pedaços, uma asa espetada no chão parecia uma tocha gigante. O trigal também ardia, e pairava um cheiro de couro queimado no ar. Nesse momento, ouvimos um segundo estrondo e o Velho Wang, experiente, gritou: “De bruços no chão!”. Fizemos o que ele mandou, e seguindo o Velho Wang, começamos a rastejar de volta. “Rastejem mais rápido! Tem bomba embaixo da asa.”
Mais tarde soubemos que aquela aeronave podia levar quatro bombas sob as asas, mas naquele dia levava apenas duas. Se tivesse as quatro, nenhum de nós estaria aqui para contar a história.
No terceiro dia depois do acidente, meu pai e homens da aldeia levaram os destroços da aeronave e o corpo do piloto em carrinhos de mão até a base aérea. Mal chegou em casa, meu irmão entrou ofegante pela porta. O atleta da família percorreu num fôlego só todo o caminho desde o liceu número 1. Uns vinte e cinco quilômetros, quase uma maratona. Ele entrou no pátio e disse apenas: “Minha tia…”. Então caiu no chão babando e revirando os olhos.
A família toda acudiu para socorrê-lo, um pressionou o meio do seu bigode, outro massageou sua mão, enquanto um terceiro lhe dava tapinhas no peito.
O que foi?”
O que aconteceu com sua tia?”
Quando finalmente voltou a si, ele torceu a boca e caiu em prantos.
Minha mãe pegou meia cumbuca de água fria da tina, despejou um pouco na boca dele e espalhou o restante pelo rosto.
Diga logo, o que aconteceu com sua tia?”
Aquele piloto da minha tia… fugiu com o avião…”
A cumbuca deslizou da mão da minha mãe e se despedaçou no chão.
Ele fugiu para onde?”, perguntou meu pai.
Aonde mais podia ir?”, meu irmão enxugou o rosto com a manga da camisa e disse, rangendo os dentes: “Taiwan! Aquele traidor, aquele canalha, voou para Taiwan para se render a Chiang Kai-shek!”
E sua tia?”, perguntou minha mãe.
Foi levada pela polícia do distrito”, respondeu meu irmão.
Os olhos da minha mãe se encheram de lágrimas. Ela nos instruiu: “Sua tia-avó não pode saber de jeito nenhum, e não vão sair falando por aí”.
E ainda precisamos falar alguma coisa?”, disse meu irmão. “O distrito inteiro já está sabendo.” Minha mãe pegou uma abóbora grande da sala e entregou a minha irmã: “Venha comigo, vamos visitar sua tia-avó”.
Pouco tempo depois, minha irmã voltou às pressas, quase sem fôlego, e entrou pelo pátio gritando: “Vó! Minha mãe falou para a senhora correr lá, agora. A tia-avó está morrendo!”.

Mo Yan, in As rãs

Nenhum comentário:

Postar um comentário