No
início havia um assassino, uma mula e um menino, mas este não é
exatamente o início, é antes disso, sou eu, Matthew, e aqui estou,
na cozinha, no meio da noite — a boa e velha foz de luz —, com os
golpes, o tec-tec-tec. O restante da casa está em silêncio.
Só
sei que, no momento, todos dormem.
Estou
à mesa da cozinha.
Só
eu e a máquina de escrever — eu e a velha Tec-tec, que era como,
de acordo com nosso saudoso pai, nossa saudosa avó a chamava, mas
essas esquisitices nunca foram muito o meu negócio. Sou mais
conhecido pelos hematomas e pela responsabilidade, porte alto e
músculos e blasfêmias, e por uma dose de sentimentalismo. Se você
for como a maioria das pessoas, talvez duvide que eu consiga formular
uma frase completa, e mais ainda que eu conheça algo sobre os
épicos, ou os gregos. Às vezes é bom ser subestimado dessa forma,
mas é muito melhor quando alguém reconhece.
No
meu caso, dei sorte:
Porque
tive Cláudia Kirkby.
Tive
também um menino, um filho, um irmão.
Aliás,
no nosso caso foi assim desde o começo: tivemos um irmão, e foi ele
— de nós cinco — quem carregou tudo nas costas. Como de costume,
me contou tudo baixinho, decidido, e é claro que não errou nem uma
vírgula.
Havia
mesmo uma velha máquina de escrever enterrada no velho quintal de
uma velha cidade de fundo de quintal, mas eu tive que prestar muita
atenção às distâncias, para não correr o risco de desenterrar um
cachorro morto ou uma cobra (o que acabei fazendo de qualquer forma).
Mas aí concluí que, se o cachorro estava lá e a cobra também, a
máquina de escrever não poderia estar longe.
Um
tesouro perfeito e sem piratas.
***
No
dia seguinte ao meu casamento, peguei a estrada.
Saí
da cidade.
Ganhei
a noite.
Cruzei
as cordilheiras de espaço vazio, e um pouco além.
A
cidade era um reino de fantasia árido e distante, um imenso campo de
palha com maratonas de céu aberto, cercada por eucaliptos e por uma
vegetação rasteira selvagem. E não é que era verdade? Vi com meus
próprios olhos: as pessoas ali viviam cabisbaixas, encurvadas.
Cansadas deste mundo.
Foi
em frente ao banco, perto de um dos vários pubs da região, que uma
mulher me indicou o caminho. Era a moça mais empertigada da cidade.
— Pega
a esquerda na rua Turnstile, está bem? Depois segue reto por uns
duzentos metros, e aí esquerda de novo.
De
cabelo castanho e bem-vestida, a mulher usava calça jeans e botas,
camisa vermelha, e fechava um dos olhos por conta do sol. A única
coisa que a entregava era o triângulo invertido de pele à mostra,
logo abaixo do pescoço: cansada e velha e cheia de vincos em
zigue-zague, como a alça de um baú de couro.
— Entendeu?
— Entendi.
— Que
número você está procurando?
— Vinte
e três.
— Ah,
então você está atrás dos Merchison, certo?
— Humm,
mais ou menos.
A
mulher se aproximou, e eu observei aqueles dentes dela, brancos e
brilhantes e, ainda assim, amarelados; muito parecidos com o sol
soberbo. Quando ela chegou ainda mais perto, estendi a mão, e lá
ficamos eu e ela e os dentes dela e a cidade dela.
— Meu
nome é Matthew — falei, e a mulher, ela era Dafne.
Então
ela se virou e largou para trás o caixa eletrônico. Chegou a
abandonar o cartão do banco para ficar ali, com a mão na cintura.
Eu já estava com metade do corpo no banco do motorista quando Dafne
assentiu, compreendendo. Praticamente tudo se encaixou para ela; foi
como alguém lendo uma notícia no jornal.
— Matthew
Dunbar.
Foi
uma afirmação, não uma pergunta.
Lá
estava eu, a doze horas de casa, numa cidade em que nunca tinha posto
os pés em todos os meus trinta e um anos de vida, e, de alguma
forma, parecia que todos estavam à minha espera.
***
Ficamos
um bom tempo nos entreolhando, no mínimo alguns segundos, e tudo foi
escancarado, exposto. Surgiram pessoas vagando pelas ruas.
— O
que mais você sabe? — perguntei. — Sabe que estou aqui para
pegar a máquina de escrever?
Ela
abriu o olho.
Enfrentou
o sol de meio-dia.
— Máquina
de escrever? — Eu tinha deixado a mulher totalmente perdida. —
Que máquina de escrever?
Bem
na hora, um senhor começou a gritar, perguntando se ela era a dona
da merda do cartão que estava empatando a merda da fila da merda do
caixa eletrônico, e ela correu para pegar suas coisas. Talvez eu
pudesse ter explicado — dito que havia uma velha máquina de
escrever nessa história toda, do tempo em que ainda se usavam
máquinas de escrever em consultórios médicos, as secretárias lá,
batendo nas teclas. Se ela estava interessada ou não, aí já não
sei. Só sei que as instruções que me deu foram certeiras.
Rua
Miller.
Uma
tranquila linha de montagem de casinhas elegantes assando ao sol.
Estacionei, bati a porta do carro e atravessei o gramado ressecado.
***
Foi
bem nesse instante que me arrependi de não ter levado a garota com
quem havia acabado de me casar — ou melhor, a mulher com quem havia
acabado de me casar, mãe das minhas duas filhas — e, é claro,
minhas filhas também. As meninas teriam adorado aquele lugar, teriam
saído saltitando, dançando, com as pernas longas e o cabelo
reluzindo ao sol. Teriam dado estrelas no gramado, gritando: “Não
olha para a nossa calcinha, hein?”
Uma
lua de mel e tanto:
Cláudia
trabalhando.
As
meninas na escola.
É
claro que parte de mim ainda gostava daquilo; muito de mim ainda
gostava muito.
Respirei
fundo, soltei o ar e bati à porta.
***
Lá
dentro, a casa era um forno.
A
mobília estava queimada.
As
fotos, torradas.
Tinha
um ar-condicionado. Quebrado.
Serviram
chá e biscoitos, enquanto o sol estapeava a janela. À mesa, o que
não faltava era suor. Pingava do braço para a toalha.
Quanto
aos Merchison, o que tinham de honestos tinham de peludos.
O
casal era um homem de regata azul e costeletas grandes e fartas,
feito dois cutelos nas bochechas, e uma mulher chamada Raelene. Ela
usava brincos de pérola, tinha cachos pequeninos e não largava sua
bolsinha. Passou o tempo todo fazendo que ia ao mercado, mas foi
ficando. No instante em que mencionei o quintal e que poderia haver
algo enterrado lá, aí que não saiu mesmo. Quando terminamos o chá
e deixamos apenas as migalhas dos biscoitos, encarei as costeletas. O
homem falou comigo com franqueza e cortesia:
— Então,
mãos à obra.
***
Do
lado de fora, no longo quintal infértil, fui em direção a um varal
e a uma árvore de banksias maltratada e sem viço. Olhei para trás
por um instante: a casa pequena, as telhas de zinco. O sol ainda
banhava o telhado, mas já recuava, inclinando-se para oeste. Cavei
com a pá e as mãos, e lá estava.
— Droga!
A
cachorra.
Outra
vez.
— Droga!
A
cobra.
Ambos
reduzidos a ossos.
Limpamos
os dois com cuidado.
Colocamos
no gramado.
— Minha
nossa!
O
homem repetiu isso três vezes, a exclamação mais alta quando
finalmente encontrei a velha Remington cinza-chumbo. Como se fosse
uma arma enterrada, estava enrolada em três camadas de plástico
grosso mas tão transparente que revelava as teclas: primeiro o Q e o
W, depois toda a seção intermediária com o F e o G, o H e o J.
Passei
algum tempo olhando para ela, só olhando:
Aquelas
teclas pretas, como dentes de um monstro, dentes de um monstro
bonzinho.
Por
fim, eu me estiquei e a tirei de lá com cuidado, as mãos imundas.
Tapei os três buracos no quintal. Desembrulhamos o plástico e nos
agachamos para observá-la com atenção.
— Uma
relíquia e tanto — disse o sr. Merchison, fazendo os cutelos
peludos tremelicarem.
— É,
sim — concordei; era mesmo sublime.
— Quando
acordei hoje de manhã, como eu ia imaginar que algo assim fosse
acontecer?
Ele
pegou a Remington e a entregou para mim.
— Quer
ficar para o jantar, Matthew?
Foi
a senhora quem perguntou, meio surpresa, mas a surpresa não ofuscou
o jantar.
Sem
ter me levantado ainda, ergui os olhos.
— Obrigado,
sra. Merchison, mas continuo com a barriga cheia de tanto biscoito. —
Olhei a casa mais uma vez; já estava encoberta pelas sombras. — Na
verdade, é melhor eu ir andando. — Apertei a mão de ambos,
dizendo: — Não tenho palavras para agradecer.
Comecei
a me afastar com a máquina de escrever aninhada nos braços.
O
sr. Merchison não ficou nada satisfeito e não fez questão de
esconder:
— Ei!
E
o que mais eu poderia fazer?
Não
dá para sair desenterrando dois animais sem apresentar uma boa
explicação, então dei meia-volta e, já embaixo do varal — um
Hills Hoist velho de guerra, igualzinho ao nosso —, fiquei
esperando para ouvir o que ele diria.
— Não
está se esquecendo de nada, não, camarada?
Então
indicou os ossos do cachorro e da cobra.
***
E
foi assim que peguei a estrada de novo.
No
banco de trás da velha perua havia os restos mortais de um cachorro,
uma máquina de escrever e o esqueleto fino de uma cobra mulga.
Parei
o carro mais ou menos na metade do caminho. Eu até conhecia um lugar
onde encontraria uma cama para descansar de verdade, mas preferi não
sair da rota. Eu me deitei no carro mesmo, com a cobra bem no meu
cangote. Antes de cair no sono, fiquei pensando em como há momentos
antes do início por toda parte — porque antes, e antes de tantas
coisas, havia um menino naquela cidade de fundo de quintal que se
ajoelhou no chão quando a cobra matou aquele cachorro e o cachorro
matou aquela cobra... Mas isso tudo ainda está por vir.
Por
ora, basta saber isto:
Cheguei
em casa no dia seguinte.
Voltei
para a cidade, para a rua Archer, onde se deu, aí sim, o início de
tudo, e onde a coisa se desenrolou de várias maneiras. A discussão
sobre o que havia passado pela minha cabeça quando decidi trazer a
cobra e o cachorro já tinha morrido fazia algumas horas, quem tinha
que ir foi e quem tinha que ficar ficou. Chegar discutindo com Rory
por causa da minha carga no banco de trás do carro é que foi a
cereja do bolo. Logo com Rory. Mais do que qualquer um, ele sabe bem
quem, por que e o que nós somos:
Uma
família destroçada pela tragédia.
Uma
história em quadrinhos explosiva sobre meninos e sangue e bichos.
Nós
nascemos para colecionar recordações assim.
No
meio do bate-boca acalorado, Henry sorriu, Tommy gargalhou e ambos
disseram: “Como sempre.” O quarto de nós estava dormindo e assim
ficou durante todo o tempo em que eu estive fora.
Quanto
às minhas filhas, assim que chegaram, as duas ficaram impressionadas
com os ossos e perguntaram:
— Por
que você trouxe isso pra casa, papai?
Porque
o papai é um idiota.
Flagrei
Rory pensando exatamente isso, mas ele nunca diria algo assim na
frente das meninas.
Quanto
a Cláudia Dunbar — que antes se chamava Cláudia Kirkby —, ela
só balançou a cabeça e me deu a mão. Estava feliz, tão feliz que
eu quase desabei outra vez. Tenho certeza de que foi porque eu estava
contente.
Contente.
Contente
é uma palavra que parece meio estúpida, mas estou aqui escrevendo e
contando isso tudo para você pura e simplesmente porque é assim que
nós somos. Estou ainda mais contente porque amo esta cozinha neste
momento, e toda a sua grandiosa e terrível história. Tenho que
fazer isso aqui. Nada mais apropriado do que fazer isso aqui. Fico
contente ao ouvir minhas anotações sendo fincadas na página.
Bem
diante de mim está a velha Tec-tec.
Embaixo
dela, o tampo da mesa de madeira todo arranhado.
Um
saleiro e um pimenteiro descombinados, na companhia de teimosos
farelos de torrada. A luz do corredor é amarela, a luz da cozinha é
branca. Estou aqui sentado, pensando, escrevendo. O velho tec-tec-tec
das teclas. Escrever é sempre difícil, mas fica mais fácil quando
se tem algo a dizer:
Quero
lhe contar sobre o nosso irmão.
O
quarto garoto Dunbar, chamado Clay.
Tudo
aconteceu com ele.
Todos
nós mudamos por causa dele.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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