Há
pessoas que têm vergonha de viver: são os tímidos, entre os quais
me incluo. Desculpem, por exemplo, estar tomando lugar no espaço.
Desculpem eu ser eu. Quero ficar só! grita a alma do tímido que só
se liberta na solidão. Contraditoriamente quer o quente aconchego
das pessoas. Vai, Carlos, vai ser gauche na vida. (Não sei se
estou citando Drummond do modo certo, escrevo de cor.)
E
para pedir aumento de salário – a tortura. Como começar?
Apresentar-se com fingida segurança de quem sabe quanto vale em
dinheiro – ou apresentar-se como se é, desajeitado e
excessivamente humilde.
O
que faz então? Mas é que há a grande ousadia dos tímidos. E de
repente cheio de audácia pelo aumento com um tom reivindicativo que
parece contundente. Mas logo depois, espantado, sente-se mal, julga
imerecido o aumento, fica todo infeliz.
Sempre
fui uma tímida muito ousada. Lembro-me de quando há muitos anos fui
passar férias numa grande fazenda. Ia-se de trem até uma
pequeníssima estação deserta. Donde se telefonava para a fazenda
que ficava a meia hora dali, num caminho perigosíssimo, rude e
tosco, de terra batida e estreito, aberto à beira constante de
precipícios. Telefonei para a fazenda e eles me perguntaram se
queria carro ou cavalo. Eu disse logo cavalo. E nunca tinha montado
na vida.
Foi
tudo muito dramático. Caiu uma grande chuva de tempestade furiosa e
fez-se subitamente noite fechada. Eu, montada no belo cavalo, nada
enxergava à minha frente. Mas os relâmpagos revelavam-me
verdadeiros abismos. O cavalo escorregava nos cascos molhados. E eu,
ensopada, morria de medo: sabia que corria risco de vida. Quando
finalmente cheguei à fazenda não tinha força de desmontar:
deixei-me praticamente cair nos braços do fazendeiro.
Nessa
fazenda que recebia hóspedes e que era maravilhosa com seus bichos,
sofri horrores. Só depois de uns três dias é que comecei a
conversar com os outros hóspedes e a me descontrair na hora das
refeições, pois eu tinha vergonha de comer na frente de estranhos e
muita fome.
Lá
estava um japonês que me perguntou se eu jogava xadrez. Respondi
audaciosamente que ele me ensinasse, que eu aprenderia logo e jogaria
com ele. E de repente me vi tendo que enfrentar tantas regras de jogo
e com vergonha de não aprender. Mas logo em seguida aprendi
superficialmente a jogar. Acontece que, creio eu, por puro acaso dei
um xeque-mate no japonês que não quis mais jogar comigo. Senti-me
infeliz, achava que o japonês não me perdoaria e que não gostava
de mim. Fiquei muito tímida com ele. Foi pois com enorme espanto que
o ouvi me dizer na hora da despedida, com uma delicadeza toda
oriental que não elogia na cara, o que seria sufocante para a minha
timidez. E ele disse: “Agradeço aos seus pais por terem feito
você.”
De
12 para 13 anos mudamo-nos do Recife para o Rio, a bordo de um navio
inglês. Eu não sabia ainda inglês. Mas escolhia no cardápio
ousadamente os nomes de comida mais complicados. E me via tendo de
comer, por exemplo, feijão-branco cozido na água e sal. Era o
castigo de minha desenvoltura de tímida.
E
quando eu era pequena em Recife meu encabulamento nunca me impediu de
descer do sobrado, ir para a rua, e perguntar a moleques descalços:
“Quer brincar comigo?” Às vezes me desprezavam como menina.
Com
sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil
que saía às quintas-feiras num diário. Nunca foram aceitas. E eu,
teimosa, continuava escrevendo.
Aos
nove anos escrevi uma peça de teatro em três atos, que coube dentro
de quatro folhas de um caderno. E como eu já falava de amor, escondi
a peça atrás de uma estante e depois, com medo de que a achassem e
me revelasse, infelizmente rasguei o texto. Digo infelizmente porque
tenho curiosidade do que eu achava do amor aos nove precoces anos.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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