A
Deodoro Leucht
Não
havia motivo para que ela procurasse aquela ligação, não havia
razão para que a mantivesse. O Freitas a enfarava um pouco, é
verdade. Os seus hábitos quase conjugais; o modo de tratá-la como
sua mulher; os rodeios de que se servia para aludir à vida das
outras raparigas; as precauções que tomava para enganá-la; a sua
linguagem sempre escoimada de termos de calão ou duvidosos; enfim,
aquele ar burguês da vida que levava, aquela regularidade, aquele
equilíbrio davam-lhe a impressão de estar cumprindo penas.
Isto
era bem verdade, mas não a absolvia perante ela mesma de estar
enganando o homem que lhe dava tudo, que educava sua filha, que a
mantinha como senhora, com o “chauffeur” do automóvel em que
passeava duas vezes ou mais por semana. Por que não procurava outro
mais decente? A sua razão desejava bem isso; mas o seu instinto a
tinha levado para ali.
A
bem dizer, ela não gostava de homem, mas de homens; as exigências
de sua imaginação, mais do que as de sua carne, eram para a
poliandria. A vida a fizera assim e não havia de ser agora, ao roçar
os cinquenta, que havia de corrigir-se. Ao lembrar-se de sua idade,
olhou-se um pouco no espelho e viu que uma ruga teimosa começava a
surgir no canto de um dos olhos. Era preciso massagem... Examinou-se
melhor. Estava de corpinho. O colo era ainda opulento, unido; o
pescoço repousava bem sobre ele e ambos, colo e pescoço, se
ajustavam sem saliências nem depressões.
Teve
satisfação de ser sua carne; teve orgulho mesmo. Há quanto tempo
ela resistia aos estragos do tempo e ao desejo dos homens? Não
estava moça, mas se sentia ainda apetitosa. Quantos a provaram? Ela
não podia sequer avaliar o número aproximado. Passavam por sua
lembrança numerosas fisionomias. Muitas ela não fixara bem na
memória e surgiam-lhe na recordação como coisas vagas, sombras,
pareciam espíritos. Lembrava-se às vezes de um gesto, às vezes de
uma frase deste ou daquele sem se lembrar dos seus traços;
recordava-se às vezes da roupa sem se recordar da pessoa. Era
curioso que de certos que a conhecessem uma única noite e se foram
para sempre, ela se lembrasse bem; e de outros que se demoraram,
tivesse uma imagem apagada.
Os
vestígios da sua primitiva educação religiosa e os moldes da
honestidade comum subiram à sua consciência. Seria pecado aquela
sua vida? Iria para o inferno? Viu um instante o seu inferno de
estampa popular: as labaredas muito rubras, as almas mergulhadas
nelas e os diabos, com uns garfos enormes, a obrigar os penitentes a
sofrerem o suplício.
Haveria
isso mesmo ou a morte seria...? A sombra da morte ofuscou-lhe o
pensamento. Já não era tanto o inferno que lhe vinha aos olhos; era
a morte só, o aniquilamento do seu corpo, da sua pessoa, o horror
horrível da sepultura fria.
Isto
lhe pareceu uma injustiça. Que as vagabundas comuns morressem, vá!
Que as criadas morressem vá! Ela, porém, ela que tivera tantos
amantes ricos; ela que causara rixas, suicídios e assassinatos,
morrer, era uma iniquidade sem nome! Não era uma mulher comum, ela,
a Lola, a Lola desejada por tantos homens; a Lola, amante do Freitas,
que gastava mais de um conto de réis por mês nas coisas triviais da
casa, não podia nem devia morrer. Houve então nela um assomo íntimo
de revolta contra o destino implacável.
Agarrou
a blusa, ia vesti-la, mas reparou que faltava um botão. Lembrou-se
de pregá-lo, mas imediatamente lhe veio a invencível repugnância
que sempre tivera pelo trabalho manual. Quis chamar a criada: mas
seria demorar. Lançou mão de alfinetes.
Acabou
de vestir-se, pôs o chapéu, e olhou um pouco os móveis. Eram
caros, eram bons. Restava-lhe esse consolo: morreria, mas morreria no
luxo, tendo nascido em uma cabana. Como eram diferentes os dois
momentos! Ao nascer, até aos vinte e tantos anos, mal tinha onde
descansar após as labutas domésticas. Quando casada, o marido vinha
suado dos trabalhos do campo e, mal lavados, deitavam-se. Como era
diferente agora... Qual! Não seria capaz de suportá-lo mais... Como
é que pôde?
Seguiu-se
a emigração... Como foi que veio até ali, até aquela cumeada de
que se orgulhava? Não apanhava bem o encadeamento. Apanhava alguns
termos da série; como porém se ligaram, como se ajustaram para
fazê-la subir de criada à amante opulenta do Freitas, não
compreendia bem. Houve oscilações, houve desvios. Uma vez mesmo
quase se viu embrulhada numa questão de furto; mas, após tantos
anos, a ascensão, parecia-lhe gloriosa e retilínea. Deu os últimos
toques no chapéu, consertou o cabelo na nuca, abriu o quarto e foi
até à sala de jantar:
— Maria
onde está a Mercedes? Perguntou.
Mercedes
era sua filha, filha de sua união legal, que orçava pelos vinte e
poucos anos. Nascera no Brasil, dois anos após a sua chegada, um
antes de abandonar o marido. A criada correu logo a atender a patroa.
— Está
no quintal conversando com Aida, patroa.
Maria
era a sua copeira e Aida a lavadeira; no trem de sua casa, havia três
criadas e ela, a antiga criada, gostava de lembrar-se do número das
que tinha agora, para avaliar o progresso que fizeram na vida.
Não
insistiu mais em perguntar pela filha e recomendou:
— Vou
sair. Fecha bem a porta da rua... Toma cuidado com os ladrões.
Abotoou
as luvas, consertou a fisionomia e pisou a calçada com um imponente
ar de grande dama sob o seu caro chapéu de plumas brancas.
A
rua dava-lhe mais força de fisionomia, mais consciência dela mesma.
Como se sentia estar no seu reino, na região em que era rainha e
imperatriz. O olhar cobiçoso dos homens e o de inveja das mulheres
acabavam o sentimento de sua personalidade, exaltavam-no até.
Dirigiu-se para a rua do Catete com o seu passo miúdo e sólido. Era
manhã e, embora andássemos pelo meado do ano, o sol era forte como
se já verão fosse. No caminho trocou cumprimentos com as raparigas
pobres de uma casa de cômodos da vizinhança.
— Bom
dia, madama.
— Bom
dia.
E
debaixo dos olhares maravilhados das pobres raparigas, ela continuou
o seu caminho, arrepanhando a sala, satisfeita que nem uma duquesa,
atravessando os seus domínios.
O
rendez-vous era para uma hora; tinha tempo, portanto, de dar umas
voltas à cidade. Precisava mesmo que o Freitas lhe desse uma quantia
maior. Já lhe falara a respeito pela manhã, quando ele saiu e tinha
como buscá-la ao escritório dele.
Tencionava
comprar um mimo e oferecê-lo ao chauffeur do “seu” Pope, o seu
último amor, o ente sobre-humano que ela via coado através da
beleza daquele “carro” negro, arrogante, insolente, cortando a
multidão das ruas orgulhoso como um Deus.
Na
imaginação, ambos, “chauffeur” e “carro”, não os podia
separar um do outro; e a sua imagem dos dois era uma única de
suprema beleza, tendo a seu dispor a força e a velocidade do vento.
Tomou
o bonde. Não reparou nos companheiros de viagem; em nenhum, ela
sentiu uma alma; em nenhum, ela sentiu um semelhante. Todo o seu
pensamento era para o “chauffeur”, e o “carro”. O automóvel,
aquela magnífica máquina, que passava pelas ruas que nem um
triunfador, era bem a beleza do homem que o guiava; e, quando ela o
tinha nos braços, não era bem ele quem a abraçava, era a beleza
daquela máquina que punha nela ebriedade, sonho e a alegria singular
da velocidade. Não havia como aos sábados em que ela, recostada às
almofadas amplas, percorria as ruas da cidade, concentrava os olhares
e todos invejavam mais o carro que ela, a força que se continha nele
e o arrojo que o chauffeur moderava. A vida de centenas de
miseráveis, de tristes e mendicantes sujeitos que andavam a pé,
estava ao dispor de uma simples e imperceptível volta no guidão; e
o motorista, aquele motorista que ela beijava, que ela acariciava,
era como uma divindade que dispusesse de humildes seres deste triste
e desgraçado planeta.
Em
tal instante, ela se sentia vingada do desdém com que a cobriam, e
orgulhosa de sua vida.
Entre
ambos, “carro” e “chauffeur”, ela estabelecia um laço
necessário, não só entre as imagens respectivas como entre os
objetos. O “carro” era como os membros do outro e os dois
complementavam-se numa representação interna, maravilhosa de
elegância, de beleza, de vida, de insolência, de orgulho e de
força.
O
bonde continuava a andar. Vinha jogando pelas ruas em fora,
tilintando, parando aqui e ali. Passavam carroças, passavam carros,
passavam automóveis. O dele não passaria certamente. Era de garage
e saía unicamente para certos e determinados fregueses que só
passeavam à tarde ou escolhiam-no para a volta das duas, alta noite.
O bonde chegou à praça da Glória. Aquele trecho da cidade tem um
ar de fotografia, como que houve nele uma preocupação de vista, de
efeito em perspectiva; e agradava-lhe. O bonde corria agora ao lado
do mar. A baía estava calma, os horizontes eram límpidos e os
barcos a vapor quebravam a harmonia da paisagem.
A
marinha pede sempre o barco a vela; ele como que nasceu do mar, é
sua criação; o barco a vapor é um grosseiro engenho demasiado
humano, sem relação com ela. A sua brutalidade é violenta. A Lola,
porém, não se demorou em olhar o mar, nem o horizonte; a natureza
lhe era completamente indiferente e não fez nenhuma reflexão sobre
o trecho que a via passar. Considerou dessa vez os vizinhos. Todos
lhe pareciam detestáveis. Tinha um ar de pouco dinheiro e
regularidade sexual abominável. Que gente!
O
bonde passou pela frente do Passeio Público e o seu pensamento
ficou-se num instante no chapéu que tencionava comprar. Ficar-lhe-ia
bem? Seria mais belo que o da Lúcia, amante do Adão “Turco”?
Saltava de uma probabilidade para outra, quando lhe veio desviar da
preocupação a passagem de um automóvel. Pareceu ser ele, o
chauffeur. Qual! Num “táxi”! Não era possível.
Afugentou o pensamento e o bonde continuou. Enfrentou o “Theatro
Municipal”. Olhou-lhe as colunas, os dourados, achou-o bonito,
bonito como uma mulher cheia de atavios. Na Avenida, ajustou o passo,
consertou a fisionomia, arrepanhou a saia com a mão esquerda e
partiu ruas em fora com um ar de grande dama sob o enorme chapéu de
plumas brancas.
Nas
ocasiões em que precisava falar ao Freitas no escritório, ela tinha
por hábito ficar num restaurant próximo e mandar chamá-lo
por caixeiro. Assim ele lhe recomendava e assim ela fazia, convencida
como estava de que as razões com que o Freitas lhe justificara esse
procedimento eram sólidas e procedentes. Não ficava bem ao alto
comércio de comissões e consignações que as damas fossem procurar
os representantes dele nos respectivos escritórios; e, se bem que o
Freitas fosse um simples caixa da Casa Antunes, Costa e Cia., uma
visita como a dela poderia tirar de tão poderosa firma a fama de
solidez e abalar-lhe o crédito na clientela.
A
espanhola ficou, portanto, próxima e, enquanto esperava o amante,
pediu uma limonada e olhou a rua. Naquela hora, a rua 1o de Março
tinha o seu pesado trânsito habitual de grandes carroções pejados
de mercadorias. O movimento quase se cingia a homens; e se, de quando
em quando, passava uma mulher, vinha num bando de estrangeiros,
recentemente desembarcados.
Se
passava um destes, Lola tinha um imperceptível sorriso de mofa. Que
gente! Que magras! Onde é que foram descobrir aquela magreza de
mulher? Tinha como certo que, na Inglaterra, não havia mulheres
bonitas nem homens elegantes.
Num
dado momento, alguém passou que lhe fez crispar a fisionomia. Era a
Rita. Onde ia àquela hora? Não lhe foi dado ver bem o vestuário
dela, mas viu o chapéu cuja pleureuse lhe pareceu mais cara
que a do seu. Como é que arranjara aquilo? Como é que havia homens
que dessem tal luxo a uma mulher daquelas? Uma mulata...
O
seu desgosto sossegou com essa verificação e ficou possuída de um
contentamento de vitória. A sociedade regular dera-lhe a arma
infalível...
Freitas
chegou afinal e, como convinha à sua posição e à majestade do
alto comércio, veio em colete e sem chapéu. Os dois se encontraram
muito casualmente, sem nenhum movimento, palavra, gesto, ou olhar de
ternura.
— Não
trouxeste Mercedes? Perguntou ele.
— Não...
fazia muito sol...
O
amante sentou-se e ela o examinou um momento. Não era bonito, muito
menos simpático. Desde muito verificara isso, agora, porém,
descobrira o máximo defeito de sua fisionomia. Estava no olhar, no
olhar sempre o mesmo fixo, esbugalhado, sem mutações e variações
de luz. Ele pediu cerveja, ela perguntou:
— Arranjaste?
Tratava-se
de dinheiro e o seu orgulho de homem do comércio que sempre se julga
rico ou às portas da riqueza, ficou um pouco ferido com a pergunta
da amante:
— Não
havia dificuldade... Era só vir ao escritório... Mais que fosse...
Lola
suspeitava que não lhe fosse tão fácil assim, mas nada disse.
Explorava habilmente aquela sua ostentação de dinheiro, farejava
“qualquer coisa” e já tomara as suas precauções.
Veio
a cerveja e ambos, na mesa do restaurant, fizeram um numeroso
esforço para conversar. O amante fazia-lhe perguntas: “Vais à
modista? Sais hoje à tarde?” — Ela respondia: “sim, não”.
Passou
de novo a Rita. Lola aproveitou o momento e disse:
— Lá
vai aquela “negra”.
— Quem?
— A
Rita.
— A
Ritinha?... Está agora com o “Louro” croupier, do
“Emporium”.
E
em seguida acrescentou:
— Está
muito bem.
— Pudera!
Há homens muito porcos.
— Pois
olha: acho-a bem bonita.
— Não
precisavas dizer-me. E como os outros... ainda há quem se sacrifique
por vocês.
Era
seu hábito sempre procurar na conversa caminho para mostrar-se
arrufada e dar a entender ao amante que ela se sacrificava vivendo
com ele. Freitas não acreditava muito nesse sacrifício, mas não
queria romper com ela, porque a sua ligação causava nas rodas de
confeitarias, de pensões chics e jogo muito sucesso. Muito
célebre e conhecida, com quase vinte anos de “vida ativa”, o seu
collage com a Lola que se não fora tão bela, fora sempre
tentadora e provocante, punha a sua pessoa em foco e garantia-lhe um
certo prestígio sobre as outras mulheres.
Vendo-a
arrufada, o amante fingiu-se arrependido do que dissera, e vieram a
despedir-se com palavras ternas.
Ela
saiu contente com o dinheiro na carteira. Havia dito ao Freitas que
se destinava a uma filha que estava na Espanha; mas a verdade era que
mais da metade seria empregada na compra de um presente para o seu
motorista amado. Subiu a rua do Ouvidor, parando pelas montras das
casas de joias. Que havia de ser? Um anel? Já lhe havia dado. Uma
corrente? Também já lhe dera uma. Parou numa vitrine e viu uma
cigarreira. Simpatizou com o objeto. Parecia caro e era ofuscante:
ouro e pedrarias — uma coisa de mal gosto evidente. Achou-a
maravilhosa, entrou e comprou-a sem discutir.
Encaminhou-se
para o bonde cheia de satisfação. Aqueles presentes como que o
prendiam mais a ela, como que o ligavam eternamente à sua carne e o
faziam entrar no seu sangue.
A
sua paixão pelo chauffeur durava havia 6 meses e encontravam-se
pelas bandas da Candelária, em uma casa discreta e limpa, bem
frequentada, cheia de precauções para que os frequentadores não se
vissem.
Faltava
pouco para o encontro e ela aborrecia-se esperando o bonde
conveniente. Havia mais impaciência nela que atraso no horário. O
veículo chegou em boa hora e Lola tomou-o cheia de ardor e desejo.
Havia uma semana que ela não se encontrava com o motorista. A última
vez em que se avistaram, nada de mais íntimo lhe pudera dizer.
Freitas, ao contrário do costume, passeava com ela; e só lhe fora
dado vê-lo soberbo, todo de branco casquete, sentado à almofada,
com o busto ereto, a guiar maravilhosamente o carro lustroso,
brilhante, cuja niquelagem areada faiscava como prata nova.
Marcava-lhe
aquele rendez-vous com muita saudade e vontade de vê-lo e
agradecer-lhe a imaterial satisfação que a máquina lhe dava.
Dentro daquele bonde vulgar, um instante, ela teve novamente diante
dos olhos o automóvel orgulhoso, sentiu a sua trepidação, indício
de sua força, e o viu deslizar, silencioso, severo, resoluto e
insolente, pelas ruas em fora, dominado pela mão destra do chauffeur
que ela amava.
Logo
ao chegar, perguntou à dona da casa se o dr. José estava. Soube que
chegara mais cedo e já fora para o quarto. Não se demorou muito
conversando com a patota e correu aos aposentos.
De
fato, José lá estava. Fosse calor, fosse vontade de ganhar tempo, o
certo é que já havia tirado de cima de si o principal vestuário.
Assim que a viu entrar, sem se erguer da cama, disse:
— Pensei
que não viesses.
— O
bonde custou muito a chegar, meu amor.
Descansou
a bolsa, tirou o chapéu com ambas as mãos e foi direita à cama.
Sentou-se na borda, cravou o olhar no rosto grosseiro e vulgar do
motorista; e após um instante de contemplação, debruçou-se e
beijou-o com volúpia, demoradamente.
O
chauffeur não retribuiu a carícia, ele as julgava
desnecessárias naquele instante. Nele, o amor não tinha prefácios,
nem epílogos; o assunto ataca-se logo. Ela não o conhecia assim:
resíduos da profissão e o sincero desejo daquele homem faziam-na
carinhosa.
Sem
beijá-lo, sentada, à borda da cama, esteve um momento a olhar
enternecida a má e forte candidatura do chauffeur. José
começava a impacientar-se com aquelas filigranas. Não compreendia
tais rodeios que lhe pareciam ridículos.
— Despe-te!
Aquela
impaciência agradava-lhe e ela quis saboreá-la mais. Levantou-se
sem pressa, começou a desabotoar-se devagar, parou e disse com
meiguice.
— Trago-te
uma coisa.
— Que
é? — Fez ele logo.
— Adivinha?
— Dize
lá de uma vez.
Lola
procurou a bolsa, abriu-a devagar e de lá retirou a cigarreira. Foi
até o leito e entregou-a ao chauffeur. Os olhos do homem
incendiaram-se de cupidez: e os da mulher, ao vê-lo satisfeito,
ficaram úmidos de contentamento.
Continuou
a despir-se e, enquanto isto, ele não deixava de apalpar, de abrir,
e fechar a cigarreira que recebera. Descalçava os sapatos quando
José lhe perguntou com a sua voz dura e imperiosa.
— Tens
passeado muito no Pope?
— Deves
saber que não. Não o tenho mandado buscar e tu sabes que só saio
no teu.
— Não
estou mais nele.
— Como?
— Saí
da casa... ando agora num táxi.
Quando
o chauffeur lhe disse isso, Lola quase desmaiou; a sensação
que teve foi de receber uma pancada na cabeça.
Pois
então, aquele Deus, aquele dominador, aquele supremo indivíduo
descera a guiar um táxi, sujo, chacoalhante, mal pintado, desses que
parecem feitos da folha de Flandres. Então ele? Então...
E
aquela abundante beleza do automóvel de luxo que tão alto ela via
nele, em um instante, em um segundo, de todo se esvaiu. Havia
internamente, entre as duas imagens, um nexo que lhe parecia
indissolúvel e o brusco perturbou-lhe completamente a representação
mental e emocional daquele homem.
Não
era mais o mesmo, não era o semideus, ele que estava ali presente;
era outro ou antes que ele era degragado, mutilado, horrendamente
mutilado.
Deitou-se
a seu lado com muita repugnância e pela última vez.
Lima Barreto, in Contos completos
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