sexta-feira, 26 de maio de 2023

Todos temos um pouco


Foi ali que mataram o filho da rainha da Inglaterra.”
Posso tirar uma foto sua?”
Sim, general.”
Tirei a câmera da pasta e bati uma foto de dona Romilda.
O senhor vai ao churrasco que vou oferecer no fim de semana?”
Se puder, vou.”
Quantos bois devo matar? Dois?”
Vai muita gente?”
Umas duzentas pessoas.”
Creio que dois é o suficiente.”
O senhor está examinando o problema da minha casa na São Clemente? A casa é minha e eles não querem sair de lá.”
Estou vendo. Tenho que ir.”
Sábado. Na fazenda. Não é nesse, no outro sábado.”
Eu irei, dona Romilda.”
Entrei no prédio do meu escritório, peguei o elevador.
Cristina estava me esperando.
Copia esta foto, por favor.”
O senhor está gostando dessa digital?”
É boa, pequena, fácil de carregar. Mas não vou me desfazer da minha Leica do tempo do Onça. Nem da Pentax.”
Tem muita coisa na sua agenda”, disse Cristina, ao sair da minha sala.
Agenda. Coisas pendentes. A agenda sempre me deixava abatido, como se eu começasse o dia fazendo uma hemodiálise. Uma maneira de aliviar esse sofrimento era abrir a gaveta e consultar o meu extrato bancário. Dava um certo alívio ver meus fundos de investimento aumentando todo mês. O problema é que eu não sabia o que fazer com aquele dinheiro todo guardado num banco. Podia comprar imóveis, ações, ouro, mandar o dinheiro para um paraíso fiscal, mas isso iria criar mais agendas. Não aguentava outra agenda.
Quer marcar a reunião com a Ceteagá? É a única urgente”, Cristina perguntou, pelo interfone.
Não, vê se eles podem amanhã. Ou outro dia.”
Eu precisava de umas férias.
Depois do almoço, Cristina entrou na minha sala.
A foto está pronta, imprimi na laser nova. Ficou muito boa. É a dona Romilda, não é?”
Você a conhece?”
Ela me alertou outro dia para não ir ao Wagner. Cuidado, eles fazem tráfico de órgãos lá. Agora evito que a dona Romilda me veja entrando no Wagner, se ele souber o que ela anda dizendo vai ficar furioso, o senhor sabe como são os cabeleireiros. Mas eu gosto da dona Romilda, ela é a única pessoa bem-humorada que conheço. Sempre que me vê diz, bom dia, princesa.”
Hoje ela me disse que mataram o filho da rainha da Inglaterra na frente do banco.”
Para mim dona Romilda falou que o príncipe foi morto naquele prédio grande, com grades. Matar o príncipe na porta do banco não tem muita lógica. Mas o prédio tem muitos apartamentos, de todos os tamanhos, de quatro quartos, de dois, conjugados com kitchenette, entra e sai gente a toda hora, você se perde nos corredores, de tão grande. Um lugar melhor para matar o filho da rainha da Inglaterra. Posso dar o retrato para ela?”
Acha uma boa ideia?”
O retrato ficou tão bom... Quando fui almoçar, eu a encontrei e lhe disse que o meu chefe tinha tirado uma foto dela.”
O que foi que ela disse?”
Perguntou: uma foto nua?”
Ela pensa que alguém ia tirar uma foto dela nua?”
O senhor talvez fizesse uma foto dessas.”
Dona Romilda disse isso?”
Eu é que estou dizendo. O senhor gosta tanto de fotografia que isso não me parece impossível. E uma foto nua dela seria uma maravilha.”
Mas eu não faço fotos de mulheres nuas.”
A dela seria uma beleza. Um bom começo.”
Ela iria gritar, quando eu passasse na rua: o general tirou minha foto nua.”
Ela não grita nunca. Fala sempre num tom de voz educado. E além disso, ninguém ia acreditar. Outro dia ela me disse, estou com todas as minhas joias, meus diamantes, rubis neste saco. O Guilherme, ao meu lado, não acreditou. Ninguém acredita nela. A dona Romilda nos levou até a praça para mostrar os escargôs que criava e iam lhe dar muito dinheiro. Moça, o Guilherme disse, isso aí são lesmas.”
É tudo da mesma família.”
Eram só quatro lesmas, que estavam numa caixa com alface. Não eram suficientes para fazer uma criação. Ela tem esse lado sonhador. O Guilherme disse que essa coisa de comer escargô é um modismo burguês que vai passar.”
Esse modismo tem pelo menos dois mil anos.”
É mesmo?”
No mínimo.”
O senhor já comeu?”
Já.”
Gostou?”
Sim.”
Acho que eu ia ter nojo. Mas se um dia o senhor me levar para comer essa coisa, eu como.”
Abri a agenda.
E a foto da dona Romilda nua?” perguntou Cristina.
Não respondi logo. A foto talvez valesse a pena, seria algo novo no meu acervo de amador.
Onde é que eu posso fazer isso? Não tenho lugar, dona Cristina. Na minha casa não pode ser.”
Pode ser na minha.”
Onde a senhora mora?”
No prédio cheio de corredores onde mataram o príncipe.”
Foi em frente ao banco.”
Dona Romilda inventou isso, tem cisma com o gerente, ele não gosta que ela durma na porta do banco.”
Em que dia nós vamos fazer isso?”
No sábado. De tarde. Se o senhor puder, é claro.”
Me dá o número do seu apartamento.”
Não, é uma kitchenette.”
Tem uma cama, não tem? Uma foto nua dela, para ficar boa, tem que ser deitada. Quer dizer, vou fazer uma em pé, também. A senhora leva a dona Romilda para o seu apartamento e eu encontro vocês lá. Quatro horas, está bem?”
O ideal para fazer aquela foto seria lá pelas ou 7. Eu levaria também os flashes, caso não tivesse uma janela dando uma luz boa da rua. E como garantia, a Leica, que me dava mais mobilidade. A digital não era uma máquina para fotos artísticas.
O prédio era mesmo grande e cheio de corredores, mas acabei achando o apartamento.
Cristina e dona Romilda, com o enorme saco que sempre carregava, estavam na sala me esperando.
General, que bom ver o senhor novamente.”
Vamos fazer a foto?”
Pelada?”
A senhora se incomoda?”
Já fiz foto pelada para a Playboy. O senhor não viu?”
Eu não leio a Playboy!
Dona Romilda tirou a roupa.
A senhora sabe quantos quilos pesa, dona Romilda?”
Não sei, princesa.”
Deve ser uns cem quilos. Tenho uma balança no banheiro, vou trazer para cá.”
Pesamos dona Romilda.
Errei por pouco. Cento e dez. Não dá uma fotografia deslumbrante, doutor?”
A cama estava arrumada, com uma colcha vermelha.
Deita aí na cama, dona Romilda.”
Eu não deito em colcha vermelha.”
Por quê?”
Não é bom. Maus espíritos atacam a gente.”
A senhora tem outra colcha, dona Cristina?”
Pode ser branca, dona Romilda?”
Pode.”
Acho que branca é até melhor, cria um bom contraste. Muda a colcha, por favor.”
Cristina trocou a colcha.
Fico com as pernas abertas?”, perguntou dona Romilda, deitando na cama.
Espera um pouco. Preciso colocar os filtros na máquina, fazer o enquadramento, ver a luz. Não demora muito.”
Pela janela entrava uma luz boa, de fim de tarde.
General, eles não querem devolver a minha mansão da São Clemente. A Rosinha diz que a casa é dela. Mas a casa é minha, quem me deu a casa foi a rainha da Inglaterra, que morou lá.”
Vou ver o que posso fazer”
E fala com o Vítor para parar de fazer propostas indecentes para mim. Já estou com dois filhos dele na barriga.”
Eu falo.”
Coloquei a Pentax num tripé.
Fecha as pernas, por favor, e fica deitada quieta. Dona Cristina, põe uns travesseiros sob a cabeça e as costas dela, para o tórax ficar um pouquinho levantado. Me arranja um livro.”
Qualquer livro?”
A senhora tem um livro de arte?”
Que arte?”
Tem que ser um livro grande.”
Este serve?”
Serve. Põe, por favor, o livro sobre o púbis dela.”
Para que esse livro, general?”
É um toque artístico, dona Romilda.”
Mas eu quero tirar uma foto com as pernas abertas.”
As outras a gente tira como a senhora quiser. Mas primeiro esta, com o livro.”
Dona Romilda ficou imóvel na cama, pensativa, mas tranquila, com o livro sobre o púbis.
Dá uma olhada aqui no visor, dona Cristina.”
Que coisa linda”, disse Cristina. “Não pensei que ela tivesse tantas curvas. Vai ser uma foto de museu internacional.”
Bati outras fotos, dona Romilda de pernas abertas, de bruços, de lado, em posição fetal. Usei também a Leica.
Está encerrada a sessão, sobrou apenas um filme. Muito obrigado, dona Romilda.”
Vai sair na Playboy?”
Não garanto.”
Estou com fome.”
Vou fazer um sanduíche para a senhora”, disse Cristina.
Quero com cerveja.”
O senhor também quer um sanduíche?”
Não, dona Cristina, estou sem fome.”
Dona Romilda, por favor, vista a sua roupa, aqui em casa ninguém come pelado.”
É a sua religião?”
É a minha religião.”
Religião eu respeito”, disse dona Romilda se vestindo.
Só tenho essa garrafa de cerveja.”
Uma garrafa está bom.”
Dona Romilda comeu o sanduíche e bebeu a cerveja, em pequenos goles.
Esse sanduíche era do quê?”
Peito de peru defumado.”
Roubaram também a minha criação de perus. Eram mais de mil. Foi a Rosinha.”
Quanto estou lhe devendo pelo seu trabalho?”
Não foi trabalho nenhum, general.”
Leva isto aqui”, eu disse, colocando algum dinheiro na saca dela.
Dá para pagar o advogado?”
Não é para o advogado, é para a senhora. Deixa que eu falo com o advogado. Não fica mostrando o dinheiro para os outros, promete?”
Prometo, general.”
A senhora já pode ir. Muito obrigado, dona Romilda.”
Vou levá-la até lá embaixo, para o porteiro não criar caso.”
Cristina saiu com dona Romilda. Quando voltou, eu estava tirando a Pentax do tripé.
Acabaram as fotos?”
Acabaram.”
Não sobrou um filme? O senhor falou que sobrou um filme.”
Cristina trocou a colcha branca e colocou de volta a colcha vermelha. Então me olhou um longo tempo.
Depois, subitamente, tirou a sua roupa e ficou inteiramente nua.
Agora é a minha vez. O senhor está ruborizado? Nunca pensei que você se ruborizasse. Posso chamá-lo de você? Quando estiver nua, é claro.”
Não estou ruborizado.”
Então? Vamos fazer as fotos, ou você prefere fazer outra coisa?”
A senhora tem o corpo muito bonito.”
Nunca percebeu antes? Também você não olhava direito para mim. Só olhava para a agenda. Só me chamava de senhora, dona Cristina, como se eu fosse uma velha. Vamos ou não vamos tirar as fotos? Ou você prefere fazer alguma coisa antes?”
As fotos podem ficar para depois.”
Deitamos, nus, sobre a colcha vermelha.
Estava me guardando para você, nenhum homem me toca há muito tempo” disse Cristina, além de outras palavras e gemidos.
Depois... depois não fiz as fotos, anoitecera e eu não ia estragar a imagem daquele corpo bonito usando os flashes medíocres da Pentax. Não existe nada pior para uma foto do que luz artificial deficiente.
Eu sempre gostei muito de você. Espero que você agora também goste um pouco de mim.”
Sem dúvida. Tenho de ir embora. Já está tarde.”
Eu sei.”
Vou me vestir, está bem?”
Está mal, mas o que posso fazer?”
Cristina, que permanecera nua, me deu um beijo furioso na porta do apartamento quando saí.
Na rua peguei o carro, apreensivo. Nunca havia feito, em um só dia, tantas coisas das quais me arrependeria.
Pensei no meu extrato bancário. Mas continuei preocupado.

Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas

Nenhum comentário:

Postar um comentário