A
notícia veio de São Paulo, trazida por Anhembi. Foi o caso que
certo cavalheiro de posses — um grã-fino, diz a revista —
regressou dos Estados Unidos em companhia de um cachorro de raça, lá
adquirido. No aeroporto de Congonhas, diante dos funcionários da
alfândega, houve a abertura de malas, e verificou-se que quatro eram
do cachorro: uma com roupas, outra com coleiras e focinheiras; uma
terceira com vitaminas, e a última com alimentos especiais.
O
comentarista fala na Revolução Francesa, que reagiu contra coisas
desse gênero, e na Revolução Russa, que reuniu em museu as joias
oferecidas pelos aristocratas a seus cães e cavalos. Expus o caso a
um cachorro de minhas relações, chamado Puck, e ele manteve comigo,
por meio dos olhos e da cauda saltitante, este diálogo quase
maiêutico, embora às avessas.
— As
malas eram quatro, diz você?
— Realmente,
meu caro Puck.
— Com
certeza eram malinhas à toa…
— Não
consta da notícia, mas presumo que fossem malas consideráveis.
— E
você quer insinuar com isso que cachorro em viagem não tem direito
a mala?
— Não
é bem assim. Pareceu-me que havia bagagem em excesso para viajante
tão sóbrio de natureza, como — não é por estar em sua presença
— eu considero o cão.
— E
quantas malas tinha o grã-fino? Quarenta?
— A
revista não diz, mas é de supor que trouxesse muitas.
— Você
acha direito que um homem viaje com quarenta malas (por hipótese) e
seu cão não tenha pelo menos quatro?
— Mas
veja bem, Puck, o homem é um animal complicado, que se afastou da
natureza. Vai a festas noturnas, que exigem equipamento especial; tem
reuniões de negócio, de esporte, de amor, de guerra. Compra livros
e até os lê. Precisa de tapetes, automóveis, discos, esmalte de
unhas e tudo aquilo que vocês, mais felizes, não conhecem ainda, ou
desprezam.
— Essas
coisas são necessárias à vida?
— São,
na medida em que a tornam mais agradável.
— E
não seria tempo de estendê-las ao uso pessoal dos cachorros e de
outros animais em condições de saboreá-las?
— Teoricamente,
talvez. Não acha, porém, que seria o caso de estendê-las antes a
todos os homens?
— Elas
chegam para todos?
— No
estado atual da produção, é capaz de não chegarem.
— Então,
que adiantaria?
— Pelo
que vejo, você tomou partido francamente por sua espécie contra a
minha, quando as duas se entendem há milênios.
— Engano,
meu caro. O que você enxerga no gesto do grã-fino é a falta de
sensibilidade diante da miséria alheia, quando eu enxergo
precisamente um começo tímido de sensibilidade, a abotoar-se como
uma florzinha anêmica. Todo esse cuidado com um cão, um simples cão
(pois somos simples, e esta é nossa maior virtude), revela que o
homem não está de todo perdido, e já começa a desconfiar da
existência do próximo. Por enquanto tem os olhos baixos, e só
repara em alguns de nós, de mais pedigree. Amanhã descobrirá as
criancinhas, e dia virá em que…
— Ele
se estimará a si mesmo, através dos outros?
— Não
vou a tanto — resmungou Puck. — Também, você está exigindo
demais de seus semelhantes.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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