Natan
e Marlene
Envelhecer
é um processo lento. Dizem. Não concordo. No meu caso foi tudo
muito rápido; de repente inválido, ou quase. De uma hora para outra
incapaz de levantar o braço mais de 60 graus, atravessar o sinal
correndo sem sentir palpitação, ficar na chuva e não pegar
resfriado, pneumonia. Ainda ontem era boliche no fim de semana, vai e
vem de clientes na relojoaria, eu como dono e único funcionário,
viagem de carro nas férias, seis horas dirigindo. Ana como
testemunha da minha vitalidade, virilidade, Marlene gritando por
atenção no banco de trás.
“Natan,
pega a lata de atum no armário”, ela me pediu num sábado à
tarde.
Tentei
esticar o braço, as pernas, mas de repente o joelho cedeu, caí no
chão. Ana se assustou, virou-se nervosa, tentou me levantar já
perguntando se eu estava bem, se tinha me machucado. Respondi que
estava bem, mas as palavras não saíram. Disse que achava que tinha
perdido a voz, mas as palavras não saíram. Ana me olhava ansiosa, o
rosto contraído. “O seu rosto”, ela falou. Não, o seu, pensei,
o seu rosto. Mas ela repetiu: “O seu rosto. Tenta mexer a boca.”
E eu mexi. Mas ele não mexeu. “Tenta mexer”, ela repetiu. E
então entendi que não estava mexendo o rosto, a boca, o braço
direito, o joelho dobrado, a perna adormecida. Todo um lado do meu
corpo paralisado, incapaz. Subitamente meu corpo já não me
pertencia.
Lembro
de cada esgar em sua boca ligando para a ambulância, das palavras
explicando como eu estava, da paralisia. Ficou em silêncio alguns
segundos, escutando, depois colocou a mão tampando o bocal, não sei
bem por que, e perguntou se eu estava entendendo a situação: “A
ambulância já vem, meu amor.” E ela nunca me chamava de amor. Não
respondi, assenti com a cabeça, com os olhos. Ela sorriu, e se
permitiu derramar a primeira lágrima, pesada, caudalosa: “Ele fez
com os olhos que entende o que aconteceu. Ok. Rápido, por favor.”
Ela
sentou comigo no chão da cozinha: “Tá gelado”, disse. Eu não
sentia nada. Abraçou-me e puxou minha cabeça para o seu colo,
acariciando meu rosto, o lado direito do meu rosto, e o que sentia
era uma memória de contato físico, a saudade de um formigamento que
não existia, um silêncio entre peles.
A
ambulância não demorou. A humilhação de sair do edifício numa
maca, as pessoas na rua se aproximando, curiosidade. Meus olhos
procurando contato, falar pela boca, explicar quem eu era, o que
estava sentindo, não sentindo. As portas da ambulância se fecharam
e olhei para Ana. Ela segurava minha mão. O tempo todo segurando um
membro morto, eu não sentia nada, uma carne inválida, esvaída de
toda sua força. “Vai dar tudo certo, meu amor”, novamente amor,
pensei. Tentei sorrir, confortá-la. Mas lembrei que não conseguia.
E as lágrimas dela continuavam, não mais tímidas, solitárias, mas
acompanhadas pelo fungar do nariz – bastava que Ana chorasse para
que o seu nariz entupisse. “Não chora, meu amor”, ela disse e
limpou as minhas lágrimas, e assim soube que eu também chorava,
involuntariamente.
Flávio Izakhi, in Amanhã não tem ninguém
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