segunda-feira, 22 de maio de 2023

Não tem ninguém

Natan e Marlene

Envelhecer é um processo lento. Dizem. Não concordo. No meu caso foi tudo muito rápido; de repente inválido, ou quase. De uma hora para outra incapaz de levantar o braço mais de 60 graus, atravessar o sinal correndo sem sentir palpitação, ficar na chuva e não pegar resfriado, pneumonia. Ainda ontem era boliche no fim de semana, vai e vem de clientes na relojoaria, eu como dono e único funcionário, viagem de carro nas férias, seis horas dirigindo. Ana como testemunha da minha vitalidade, virilidade, Marlene gritando por atenção no banco de trás.
Natan, pega a lata de atum no armário”, ela me pediu num sábado à tarde.
Tentei esticar o braço, as pernas, mas de repente o joelho cedeu, caí no chão. Ana se assustou, virou-se nervosa, tentou me levantar já perguntando se eu estava bem, se tinha me machucado. Respondi que estava bem, mas as palavras não saíram. Disse que achava que tinha perdido a voz, mas as palavras não saíram. Ana me olhava ansiosa, o rosto contraído. “O seu rosto”, ela falou. Não, o seu, pensei, o seu rosto. Mas ela repetiu: “O seu rosto. Tenta mexer a boca.” E eu mexi. Mas ele não mexeu. “Tenta mexer”, ela repetiu. E então entendi que não estava mexendo o rosto, a boca, o braço direito, o joelho dobrado, a perna adormecida. Todo um lado do meu corpo paralisado, incapaz. Subitamente meu corpo já não me pertencia.
Lembro de cada esgar em sua boca ligando para a ambulância, das palavras explicando como eu estava, da paralisia. Ficou em silêncio alguns segundos, escutando, depois colocou a mão tampando o bocal, não sei bem por que, e perguntou se eu estava entendendo a situação: “A ambulância já vem, meu amor.” E ela nunca me chamava de amor. Não respondi, assenti com a cabeça, com os olhos. Ela sorriu, e se permitiu derramar a primeira lágrima, pesada, caudalosa: “Ele fez com os olhos que entende o que aconteceu. Ok. Rápido, por favor.”
Ela sentou comigo no chão da cozinha: “Tá gelado”, disse. Eu não sentia nada. Abraçou-me e puxou minha cabeça para o seu colo, acariciando meu rosto, o lado direito do meu rosto, e o que sentia era uma memória de contato físico, a saudade de um formigamento que não existia, um silêncio entre peles.
A ambulância não demorou. A humilhação de sair do edifício numa maca, as pessoas na rua se aproximando, curiosidade. Meus olhos procurando contato, falar pela boca, explicar quem eu era, o que estava sentindo, não sentindo. As portas da ambulância se fecharam e olhei para Ana. Ela segurava minha mão. O tempo todo segurando um membro morto, eu não sentia nada, uma carne inválida, esvaída de toda sua força. “Vai dar tudo certo, meu amor”, novamente amor, pensei. Tentei sorrir, confortá-la. Mas lembrei que não conseguia. E as lágrimas dela continuavam, não mais tímidas, solitárias, mas acompanhadas pelo fungar do nariz – bastava que Ana chorasse para que o seu nariz entupisse. “Não chora, meu amor”, ela disse e limpou as minhas lágrimas, e assim soube que eu também chorava, involuntariamente.

Flávio Izakhi, in Amanhã não tem ninguém

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