A
casa onde eu morava nessa época tinha algumas qualidades. Uma das
mais bacanas era o quarto, pintado de um azul muito escuro. Esse azul
muito escuro oferecia um abrigo para muitas ressacas, algumas delas
suficientemente brutais para matar um homem, sobretudo numa época em
que eu engolia as pílulas que as pessoas me davam sem me preocupar
em perguntar o que eram. Algumas noites eu sabia que, se adormecesse,
morreria. Ficava dando voltas sozinho a noite toda, do quarto ao
banheiro e do banheiro à cozinha, passando pela sala da frente.
Abria e fechava a geladeira, repetidas vezes. Abria e fechava as
torneiras. Ia ao banheiro e abria e fechava as torneiras. Dava
descargas na privada. Puxava as orelhas. Inspirava e expirava.
Depois, quando o sol saía, eu sabia que estava salvo. Aí dormia com
as paredes azuis azuis azuis, curando-me.
Outra
característica da casa eram as batidas na porta, de mulheres
desagradáveis, às três ou quatro horas da manhã. Certamente não
eram damas de grande encanto, mas tendo uma mente meio idiota eu
achava que de algum modo elas me traziam a aventura. A verdade mesmo
é que a maioria delas não tinha outro lugar para ir. E gostavam do
fato de que havia bebida e de que eu não fazia muita força pra ir
pra cama com elas.
Evidentemente,
depois que conheci Sarah, essa parte do meu estilo de vida mudou
bastante.
Aquele
bairro, nos arredores da Carlton Way, perto da Avenida Western,
também mudava. Antes era quase todo de classe média branca, mas os
problemas políticos na América Central e em outras partes do mundo
haviam trazido um outro tipo de indivíduo para a área. Os homens
eram geralmente baixos, escuros ou morenos claros, geralmente jovens.
Havia esposas, filhos, irmãos, primos, amigos. Começaram a inundar
os apartamentos e pátios. Viviam muitos num mesmo apartamento, e eu
era um dos poucos brancos que restavam no complexo em torno do pátio.
As
crianças corriam de um lado para outro, subiam e desciam a
ajardinada alamedazinha do pátio. Pareciam todas entre os dois e os
sete anos. Não tinham bicicletas nem brinquedos. Raramente se viam
as esposas. Ficavam dentro de casa, escondidas. Muitos dos homens
também permaneciam trancados. Não era bom deixar o senhorio saber
quantas pessoas moravam numa única unidade. Os únicos homens que se
viam eram os inquilinos legais. Pelo menos eles pagavam os aluguéis.
Como sobreviviam, não se sabia. Os homens eram pequenos, magros,
calados, sérios. A maioria sentava-se de camiseta nos degraus das
varandas, um pouco caídos para a frente, uma vez ou outra fumando
cigarros. Sentavam-se nos degraus das varandas durante horas,
imóveis. Às vezes compravam carros muito velhos em sucatas e os
dirigiam devagar pelo bairro. Não tinham seguro para o carro nem
carteira de motorista, e rodavam com placas vencidas. A maioria dos
carros tinha freios ruins. Os homens quase nunca paravam no sinal da
esquina, e muitas vezes não respeitavam o sinal vermelho, mas havia
poucos acidentes. Alguma coisa cuidava deles.
Após
um tempo, os carros quebravam mas meus novos vizinhos não os
abandonavam na rua. Faziam-nos subir as alamedas e os estacionavam
diante de suas portas. Primeiro trabalhavam no motor. Tiravam o capô,
e o motor enferrujava-se na chuva. Depois punham o carro sobre cepos
e tiravam as rodas. Levavam-nas para dentro de casa e as mantinham
lá, para que não as roubassem durante a noite.
Quando
eu vivia lá, havia duas filas de carros no pátio, assentados em
cepos. Os homens sentavam-se imóveis em suas varandas, de camiseta.
Às vezes eu balançava a cabeça ou acenava para eles. Jamais
retribuíam. Aparentemente, não compreendiam nem liam os avisos de
despejo que arrancavam, mas eu os via examinando o jornais de L.A.
Eram estoicos e resistentes porque, comparadas com o lugar de onde
vinham, as coisas agora eram fáceis.
Bem,
deixa pra lá. Meu consultor de impostos sugerira que eu comprasse
uma casa, e assim, para mim, não se tratava na verdade de uma “fuga
branca” diante dos invasores. Embora, quem sabe? Eu notara que,
toda vez que me mudara em Los Angeles, no correr dos anos, toda
mudança fora sempre para o Norte ou o Oeste.
Finalmente,
após algumas semanas de busca de casa, encontramos a certa. Após a
entrada, as prestações mensais chegavam a 789,81 dólares. Tinha
uma enorme sebe na frente, na rua, e o pátio também ficava na
frente, de modo que a casa ficava recuada no terreno. Parecia um
lugar danado de bom pra gente se esconder. Tinha até uma escada, um
andar de cima com um quarto, banheiro e o que iria se tornar minha
sala de trabalho. E haviam deixado lá uma mesa velha, uma coisa
enorme, feia e velha. Agora, décadas depois, eu era um escritor que
tinha uma mesa. Sim, senti o temor, o temor de me tornar igual a
eles. Pior, eu tinha uma encomenda para escrever um argumento.
Estaria condenado e amaldiçoado, estaria para ser sugado até o fim?
Não achava que seria assim. Mas será que alguém acha, algum dia?
Sarah
e eu transferimos nossos poucos bens para lá.
O
grande momento chegou. Pus a máquina de escrever em cima da mesa,
encaixei uma folha de papel e bati nas teclas. A máquina ainda
funcionava. E havia bastante espaço para um cinzeiro, o rádio e a
garrafa. Não deixem ninguém convencê-los de outra coisa. A vida
começa aos 65.
Charles Bukowski, in Hollywood
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