segunda-feira, 15 de maio de 2023

Amanhã não tem ninguém | Prólogo


Quando se começa a apertar, não há volta.”
Herta Müller

Você vai no carro com o seu avô.” Bisavô, eu quis dizer, mas o rabino já tinha fechado a porta da Kombi e agora éramos eu, o caixão do meu bisavô e o motorista – um rapaz apenas alguns anos mais velho que defendia sua responsabilidade com um bigode ralo.
Eu abri o vidro do carro fazendo uma força incrível para girar a manivela, a porta gemendo como se fosse desmontar. O rapaz colocou a chave na ignição da Kombi, o motor acordou, espreguiçando-se com um arroto, um barulho assustador, nem um pouco solene. O carro todo tremelicava, minhas bochechas ondulavam. Chamei o rabino e a voz saiu como um soluço engasgado pelo motor da Kombi. “O que eu tenho que fazer?”, perguntei. Ele me olhou, impaciente, gelado, e perguntou a minha idade. “Treze”, respondi. “Você fez o bar mitzvah, não é?” A pergunta, uma afirmação. Não, a resposta verdadeira. Sim, a esperada, e assenti positivamente, um aceno de cabeça comicamente exagerado pelo tremer do carro. Com o corpo do meu bisavô morto na Kombi, sob o mesmo teto do meu bisavô que trabalhou por 60 anos, rezava todas as sextas e jejuava no Yom Kipur, eu disse que sim, menti.
O rabino fechou os olhos, a pálpebra parecendo ter o peso da minha mentira, e disse, ainda sem abrir os olhos: “Então pense nele, reze por ele.”
Um solavanco, o carro começou a andar, o caixão dando leves quiques na parte de trás da Kombi. “Não se preocupe”, o motorista, “não vai soltar. O caixão está bem preso.” O carro passou pelo portão do Chevra Kadisha e o calor então era absurdo, só me vinham à mente os ternos negros do meu bisavô e a história que a minha avó sempre contava sobre o dia em que ele teve que assumir o negócio do pai, falecido, aos 19 anos, que do trabalho dele dependiam a mãe e ele próprio, sem isso não teriam dinheiro para a comida no mês seguinte. E eu ali, bastava pensar nele, sobre ele, e já morrendo de medo e preocupação em falhar.
O rabino tinha dito: “Pense nele, reze por ele”, mas rezar eu não podia, sabia e muito mais não tinha conhecimento sobre aquela pessoa morta cujo corpo, caixão, quicava numa Kombi branca em pleno sol de meio-dia, meu bisavô. Meu contato com ele fora mínimo; ele no Rio, eu em São Paulo. Ele velho, muito velho desde que nasci e nos últimos anos com o corpo desmilinguindo em pele e osso, o olhar apagado pela névoa branca que tirava o viço dos olhos, a boca levemente torta quando falava. Pense nele. Tentei, e minha última lembrança, a primeira que veio, foi do dia em que ele me dera seu canivete gasto, a lâmina enferrujada, alaranjada pelo desuso. Ele me entregou o canivete e eu olhei como se perguntasse: o que vou fazer com isso?, e meu bisavô disse, em seu tom baixíssimo, um sopro quase inaudível, que com ele eu poderia cortar a camisa quando uma pessoa da família morresse, em sinal de luto. Logo arregalei os olhos, pensando que presente mais fúnebre, triste, chato, inútil, mas depois fiquei imaginando quem seria a pessoa da família que poderia morrer. Acho que não agradeci, baixei a cabeça, esperava um presente mais interessante, tive medo que a pessoa que morresse fosse meu pai, minha mãe. Não: definitivamente meu pai, o neto dele. Levantei a cabeça, já pensando em retornar o presente, ele sorria triste, e tossiu – meu bisavô vivia tossindo; talvez minha memória mais forte dele seja essa, ele sempre tossindo, acenando para a minha avó, sua filha, trazer um cinzeiro de prata que ele chamava de minha escarradeira, enquanto a baba pendia entre a boca e a escarradeira, o cinzeiro, num equilíbrio improvável que poderia durar minutos, valsa demorada, dois para lá, um para cá – até que entendi que aquele canivete seria usado para cortar minha roupa justamente no dia da morte dele.
Apalpei meus bolsos, desperto depois de mais uma curva e um rufar do caixão – um lamento? –, em busca do canivete. Nada nos bolsos da calça, procurei na mochila, bolso da frente, e lá estava, mesma forma, o mesmo peso, mas não era. Meu celular. Tinha esquecido o canivete, relegado ao fundo de uma gaveta e logo agora a lembrança, o peso na consciência. Olhei novamente para trás, o corpo do meu bisavô. Em seguida, serpenteando pela avenida Brasil, uma rabiola de carros seguindo a Kombi, primeiro o do meu pai, com minha avó na frente, seu olhar duro, distante.
O motorista perguntou: “Seu avô?” “Bisavô”, disse, contente em finalmente conseguir retificar. “Posso fazer outra pergunta?” Respondi que sim, quase agradecendo a ele por me puxar daquele emaranhado de lamentações e culpa: “Por que vocês enterram com caixão fechado?” Vocês, nós judeus. Eu, judeu. Simples, uma pergunta boba, e acho que até sorri, a resposta esgueirando-se entre os caninos; mas ela não saiu, ficou presa, enclausurada, e minha boca fechou-se levando com a demora o sorriso. Vasculhei minhas lembranças, as aulas de judaísmo que não frequentei pela decisão de ignorar o bar mitzvah, com o apoio da minha mãe e a anuência calada do meu pai, descrente, e nada. O silêncio pesando, os segundos correndo mais que a Kombi; o motorista repetiu a pergunta, um tom acima, acreditando que eu não tinha ouvido.
Por que vocês enterram com caixão fechado?”
Não sei.”
Um fiapo envergonhado de voz. Ele olhou da avenida para os meus olhos, e enxergou a culpa, a vergonha, e novamente para a avenida, em silêncio. Aquela situação não poderia se prolongar mais. “Quanto tempo ainda?”, perguntei.
Quinze minutos.”

Flávio Izhaki, in Amanhã não tem ninguém

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