[…]
Depois
de chamar Caminhão de pai, o ponto fechou os olhos e voltou a
dormir. Caminhão quase apagou junto. Aquilo era demais para ele.
Palavra-ônibus o segurou pelo braço e o tirou dali. Na sala ele
chorou convulsivamente. Já não entendia seus sentimentos, não
sabia o que pensar. Enquanto consolava o marido, Palavra-ônibus
inteirou-se dos últimos acontecimentos pela televisão, que não
cessava de transmitir as manifestações e enfrentamentos nas ruas, e
pôde então entender o drama que o marido estava vivendo. “Olha só
o que eu provoquei”, lamentava-se Caminhão, entre soluços. “Não
sejas ingênuo”, ela ponderou, “isso transcende o atropelamento
do ponto. E o mais importante: ele está vivo.” “Vivo, mas
sabe-se lá em que condições. Pensa que somos seus pais…” “Deve
estar em estado de choque. Isso passa. Vamos cuidar dele, esperar que
se recupere. Depois vemos.” “Depois vemos… Isto tudo pode até
passar para ele. Mas passará para nós? O que nos garante que ele
será capaz de reconhecer o afeto que lhe tenhamos dedicado? E a
pontuação, e a lei, o que pensarão? Que agi como um bom pai? Nada
disso. Farão de tudo para que eu seja condenado, preso ou impedido
de trabalhar. Podes imaginar as consequências disso para a nossa
vida?” “Não vamos nos desesperar. As coisas estão evoluindo a
nosso favor: o ponto se recupera, os protestos da pontuação assumem
um caráter e uma proporção que, aos poucos, te retiram do centro
dos acontecimentos. E quanto a uma possível condenação, já te
ocorreu que o ponto pode ter sua parcela de culpa? Vamos esperar para
ver o que ele tem a nos contar.” “Esperar… Preciso sair,
retomar meu trabalho.” “Não por enquanto. Vamos ficar em casa e
deixar os ânimos lá fora se acalmarem. Estamos seguros aqui. Se
tivessem te identificado, já teriam vindo à tua procura – tuas
placas embarradas parecem ter sido de grande serventia. Prometo nunca
mais reclamar da tua falta de banho… E se ninguém deu falta do
ponto, é porque ninguém sabe quem ele é. Talvez seja um desses
infelizes que andam rolando pela rua, para quem a sociedade só liga
quando precisa exercitar sua demagogia. E quanto à repercussão na
mídia, ela não é de todo ruim, gera polêmica, e a polêmica já
está tão grande que falta pouco para começarem a questionar a
existência do ponto ou o seu atropelamento.” “Eu sei que
ele existe”, disse Caminhão, “ele me chamou de pai.”
“Amigos
telespectadores, falo agora de nossos estúdios, onde começa mais um
Palavras Cruzadas, o programa de debates líder de audiência.
O tema não poderia ser outro: as manifestações que tomam conta de
Ponto Alegre. Nossas equipes de reportagem continuarão a transmitir
das ruas, mantendo-nos informados sobre os últimos acontecimentos”,
introduziu Vocativo. “Os convidados de hoje são o poeta Ponto de
Orvalho e o psicólogo Ptolomeu, organizador do 1 Encontro
Consonantal de Ponto Alegre. Começando pelo senhor Ponto de Orvalho:
na sua opinião, o que teria levado os protestos pelo atropelamento
de um ponto até o momento anônimo a tomar essa proporção de
levante popular?” “Pois é, meu caro Vocativo, de repente nossa
sociedade tão hierarquizada descobre que nós, a pontuação, esse
mero acessório empregado para simular na escrita a riqueza
expressiva da oralidade, temos voz e pensamento próprios. Coloco-me
no lugar dos todo-poderosos nomes e verbos e imagino sua preocupação:
como lidar com uma exclamação que questiona, uma interrogação que
se exclama, um ponto que quer dar livre curso às ideias ou uma
vírgula que pretende pôr um ponto-final no atual estado de coisas?
A verdade é que a pontuação, sabidamente acomodada, resolveu
reagir ao rebaixamento de serva a pária a que tem sido submetida ao
longo da história. O atropelamento de um ponto – e principalmente
por tratar-se de um ponto anônimo, talvez menor abandonado, um
desses pobrezinhos que se criam seguindo palavras de baixo calão –
foi o estopim da revolta por ser emblemático da condição em que se
encontra a pontuação como um todo. Uma pesquisa recente indica que
mais de setenta por cento das famílias de pontos já tiveram um
parente atropelado. Estamos diante de um sério problema social. Ao
se indignar e sair às ruas, a pontuação apenas reivindica para si
aquilo a que tem direito. E ela quer mais que segurança: quer ser
respeitada para poder desempenhar seu papel com dignidade. O que
temos visto por aí vai em sentido oposto. Os ponto e vírgulas estão
sendo conduzidos a uma aposentadoria forçada. As exclamações, ao
contrário, vêm sendo empregadas em excesso, o que anula seu efeito
e as desvaloriza. Banalizadas pelo uso inadequado, deixam de ocupar
posições importantes e significativas. Passa algo parecido com as
reticências. É doloroso topar com tantos três pontinhos vagando à
toa entre palavras ou frases, muitos deles carregando nas costas
entrelinhas inúteis. Mas não podemos aceitar que sua erradicação
pura e simples, como aconteceu por ocasião da limpeza das quadras de
poesia, seja adotada como solução única em qualquer circunstância.
Sobram exemplos de descaso para com a pontuação e falta
reconhecimento de sua importância em nosso dia a dia. Quando tudo
flui, quem leva os louros é a escolha de palavras, a sintaxe, as
rimas ou as ideias, nunca a pontuação, que passa despercebida
justamente porque fez um bom trabalho. Já quando as coisas não
andam bem, a culpa sempre recai sobre ela. Ora, de quem é a culpa
quando dois-pontos ou uma vírgula são mal-empregados? A pontuação
precisa trabalhar, não pode se dar ao luxo de escolher o emprego. Se
ela se manifesta, acho que, para o bem de todos, deveria ser ouvida.”
[…]
Vitor Ramil, in A primavera da pontuação
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