terça-feira, 18 de abril de 2023

A primavera da pontuação | Um


Certa manhã pintou-se um quadro negro: uma palavra-caminhão, dessas que trafegam ameaçadoramente inclinadas, carregadas de letras garrafais, atropelou um ponto em uma esquina de frases e fugiu. Revoltada, a pontuação, que a tudo assistira, aglomerou-se no local do acidente. Exclamações nervosas e interrogações confusas logo instalaram o caos, provocando um avanço descontrolado de palavras seguido de grave engavetamento, ao fim do qual uma palavra-pneu rodou na direção de uma padaria, bateu no meio-fio e, saltando sobre o padeiro, chocou-se contra o balcão, quebrando o vidro do mostrador e espalhando palavras-pãezinhos para todos os lados. Um polvilho finíssimo subiu com força entre estilhaços para depois descer suavemente sobre os ombros de um guarda-pó, que chegava com o objetivo de controlar a situação.
Tratando de não ser seguido, Caminhão costurou e descosturou frases obscuras e sem fundamento que discorriam do centro em direção à periferia. Palavra-ônibus, sua mulher, estranhou ao vê-lo chegar em casa. Ele, que costumava voltar do trabalho apenas para o almoço ou no fim do dia, seguido sempre de uma exclamação, aparecia desta vez no meio da manhã e com um desanimado ponto final no para-choque dianteiro. “Caminhão”, ela perguntou, “aconteceu alguma coisa?” “Algo horrível: atropelei um ponto”, ele contou, nervoso. “Será este aqui?”, perguntou ela, mostrando o para-choque. Ele correu para ver. “Pensei que o havia esmagado ou atirado longe. Parece estar vivo.” Caminhão carregou o ponto com todo o cuidado e deitou-o na cama do quarto de hóspedes. Superlativo, o cachorro, pressentindo alteração na rotina da casa, começou a latir no pátio. Caminhão pediu à mulher que o fizesse parar: “Ele está chamando atenção. Ninguém pode saber o que aconteceu”. Superlativo era inteligentíssimo e, por isso, muito inquieto. Mas era também o mais obediente dos cachorros. Palavra-ônibus foi até a janela basculante da cozinha, que dava para o pátio, mandou-o ficar quieto e ele obedeceu.
No local do acidente, o guarda-pó percebeu que a confusão era grande demais e pediu reforço imediato. Enviaram-lhe um guarda-roupa e um guarda-volumes. Mesmo assim a situação foi ficando fora de controle, pois a pontuação, que se movimentava com muita rapidez, estava exaltada além da conta. Exclamações denunciavam aos gritos a falta de segurança no trabalho. Interrogações questionavam a competência dos guardas e do governo. Vírgulas intrometiam-se em todos os grupos, tornando os debates intermináveis. Chegavam pontos de todas as direções. Tomados de indignação, cada vez mais alterados, amontoavam-se na esquina, onde, a certa altura, começaram a protestar com palavras de ordem. A aglomeração atingiu tal proporção que se formou uma pilha negra e imensa cujo ponto culminante era o mais inflamado. Colchetes e parênteses começaram a circundar aquela montanha convulsa numa procissão lenta e contínua. Dois-pontos e aspas acusavam: “Atropelado”. Reticências se posicionavam, falando fundo à imaginação: “Desaparecido…”.
Palavra-ônibus voltou da cozinha trazendo um copo d’água para Caminhão. “A ironia é que eu estava em ponto morto quando o atropelei”, ele disse. “Ele não está morto, querido, te acalma.” O ponto não tinha um só arranhão, mas continuava desacordado. “Quem sabe chamamos um médico?”, ela propôs. “Não, nem penses nisso. Serei denunciado e preso. Tu sabes o quanto preciso trabalhar. Se Deus quiser, o pobre ponto vai despertar e me perdoar. Não tive intenção de machucá-lo. Os pontos são tão pequenos. E, pra complicar, às vezes tem-se a impressão de que não vão surgir. Na parte moderna da cidade parecem ter sido abolidos por lei, de tanto que não são vistos. Isso confunde quem anda muito de um lado para o outro. Mas nem foi esse o meu caso. Eu simplesmente tinha pressa. Não tenho desculpa. Só não sei onde estava com a cabeça quando decidi fugir. Que grave erro. Agora não posso voltar atrás.” “Vamos esperar um pouco, então. Afinal, ele parece tão bem, respira tranquilamente. Vai lá pra sala, descansa; liga a televisão, tenta pensar em outra coisa. Esse simpático ponto vai despertar sem demora. É tão jovem. Vou cuidar dele como se fosse um filho. Meu filho…”, disse a mulher. O quarto de hóspedes estava imerso numa penumbra acolhedora. Fora preparado originalmente para o primeiro filho do casal, até eles descobrirem que Palavra-ônibus não podia engravidar. Caminhão percebeu que a mulher se deixava conduzir por esse pensamento triste, mas não tentou detê-la. Saiu do quarto, foi para a sala e ligou a televisão, como ela havia sugerido.
rego e Latino desceram do automóvel que mantinham em sociedade. Não podiam acreditar no que estavam vendo. “Passa o monóculo”, pediu Grego. “Multiforme multidão, aurifulgente caos!”, dizia Latino para si mesmo, em êxtase, o monóculo vibrando no olho esquerdo. Grego e Latino eram dois radicais perigosos. Pertenciam aos Compostos Eruditos, grupo terrorista que atuava na clandestinidade sem nunca assumir seus atentados nem deixar pistas, e que tinha por objetivo inocular na sociedade, por meio da educação e da disciplina, uma cepa dos ideais clássicos desenvolvida por eles com o propósito de livrar os cidadãos, ou a “prole tarada”, como preferiam dizer, de barbarismos e outros ismos que a infectavam. A “prole tarada”, a rigor, era a nação inteira, vista pelos Compostos Eruditos como vítima de um coloquialismo vulgar e degradante. Se dependesse desses sediciosos, um dia o latim clássico não só estaria de volta às igrejas como seria língua franca de quitandas e bordéis; o grego seria moeda corrente em conversas nas altas esferas intelectuais e também nos xingamentos dos campos de futebol. Para chegar lá, defendiam a implantação de um Estado transitório em que o respeito a uma norma-padrão seria absoluto. Os líderes absolutistas seriam eles, obviamente, que se preparavam para ser “disciplinadores iluminados”. Grego e Latino planejavam havia anos desencadear uma desordem de grandes proporções, que degenerasse em profunda instabilidade social e criasse as condições necessárias para a ascensão ao poder de seu líder máximo, Homúnculo, o Grande. Pois agora a desordem que esperavam estava à sua frente, genuinamente popular, como jamais fora em seus melhores sonhos. Abandonaram o automóvel ali, entre tantos outros, e se misturaram aos manifestantes. “Amigos telespectadores, estamos ao vivo, transmitindo diretamente do local onde tiveram início as manifestações que, neste momento, paralisam grande parte do centro de Ponto Alegre, capital do nosso querido e, até há pouco, pacato reino de Ponto Alegre”, falava Vocativo, conhecido repórter, ao microfone da mais importante rede de televisão do país. Ele tentava, sem sucesso, aproximar-se do local exato do acidente. “Entrevista o sujeito de monóculo que parou ao teu lado”, disse o ponto eletrônico no ouvido dele. Vocativo continuou: “Tudo começou com o atropelamento de um ponto por uma palavra-caminhão não identificada. A vítima, no entanto, está desaparecida. Vamos ouvir um cidadão. Senhor, é testemunha do que aconteceu?”. “Não, mas dizem que a vítima é um ponto cego que costuma pedir esmolas nesta esquina”, mentiu Grego, sem titubear, explorando sua voz de barítono, o olho direito brilhando atrás do monóculo que compartilhava com Latino.
O telefone do Agente da Passiva tocou. A Passiva era a polícia secreta do Rei. O povo a apelidara assim e o apelido pegara, pois era sabido por todos que o Rei não tinha voz ativa nem mesmo em seus nobres aposentos. O Agente da Passiva fora um sujeito na ativa até pouco tempo antes. Após passar uma temporada de molho, entrara para a Passiva, onde começara como agente comum para, depois de uma ascensão vertiginosa, assumir a diretoria da discreta organização, que muitos julgavam uma lenda. “Alô”, disse ao aparelho. O caráter sigiloso de seu trabalho o obrigava, muitas vezes, a se comunicar de maneira cifrada. “Vem irrompendo a luz”, disse um de seus verbos auxiliares do outro lado da linha, recomendando ao chefe que ligasse a televisão. “A luz é muito apreciada por mim. O vidro da minha janela foi atravessado por seus raios”, respondeu o Agente da Passiva, dando a entender que já estava a par dos acontecimentos. Depois de assistir às manifestações por mais um tempo, colocou seus óculos escuros e ganhou a rua com ares de aposentado que sai para uma caminhada. Dirigiu-se ao gabinete do Regente, a quem se reportava agora, devido ao afastamento do Rei, que se declarara temporariamente impossibilitado de governar – o motivo alegado por Sua Majestade, e aceito pelo Parlamento, era de ordem emocional. Chegando lá, o Agente da Passiva evitou a entrada principal do prédio e encaminhou-se para uma pequena porta lateral, oculta por uma cerca viva. Anunciou-se com duas pancadas fortes e uma leve. “A ante…”, alguém disse por uma espécie de respiradouro no centro da porta. “Até após com contra de desde em entre para per perante por sem sob sobre trás”, completou o Agente da Passiva em voz baixa, aproximando o rosto da abertura. Senha confirmada, a porta foi aberta e ele entrou.
Em poucas horas as manifestações haviam se espalhado por muitas ruas e tomado nova conformação. Vocativo continuava a transmitir diretamente do local: “Amigos telespectadores, recebemos a notícia de que esse já é o assunto mais comentado nas redes sociais, o que talvez explique a velocidade espantosa com que o número de manifestantes vem aumentando. Eles exigem justiça para o caso do atropelamento do ponto, mas vão além: fazem reivindicações, principalmente de cunho trabalhista, que apenas de forma indireta podem ser associadas ao episódio que originou os protestos. Observem os cartazes improvisados: PELO EMPREGO DE PARÊNTESES; PELO AUMENTO DO VALOR MELÓDICO; MAIS EMPREGO DA PAUSA, MENOS PAUSA DO EMPREGO; PELA APROVAÇÃO DO DIVÓRCIO ENTRE SUJEITO E PREDICADO; RESTRIÇÃO ÀS RESTRITIVAS; A INFLEXÃO É DÉBIL, O SALÁRIO TAMBÉM. Há escritos não tão sérios, como os bem-humorados ABUSA DA PONTUAÇÃO QUE A GENTE GOSTA, ENTREI À FORÇA NA MENOSPAUSA ou o que está estampado na minúscula camiseta daquela desinibida exclamação: OH! MAIS DESEJO! AH! MAIS ALEGRIA! Não faltam críticas aos políticos e ao Regente, como na ameaça explícita desta pichação: PODEMOS ABREVIAR V.EX.as e o SR. REG. Até a mídia, na pessoa deste apresentador, é alvo de ataque. Reparem no cartaz que uma vírgula sustenta a meu lado: ISOLEM O VOCATIVO. Aproveito para dizer que tenho noticiado os fatos com a mais absoluta isenção e…”. “Os guarda-livros!”, gritou o ponto eletrônico para Vocativo, interrompendo-o. O apresentador reagiu rapidamente: “A tensão agora aumenta com a chegada de um enorme contingente de guarda-livros, que se divide em vários grupos e… olhem isso: eles passam a investir sobre os manifestantes! Devem ter ordem de dispersá-los à força. Começa uma grande correria. A pontuação faz o que pode para escapar da truculência policial, que…”. O tumulto tornou quase impossível entender o que dizia Vocativo. Ele parou de falar por alguns instantes. A imagem de um ponto e vírgula mancando após ser agredido por um guarda-livros foi mostrada repetidas vezes. A ação paramilitar, espontânea e igualmente violenta de guardanapos surgidos de restaurantes das redondezas, pôde ser vista de mais de um ângulo. Alguns manifestantes começaram a reagir aos guardas usando travessões. Dois deles – guarda-livros – estavam cercados por travessões duplos. Um brutamontes cabeludo aproximou-se da câmera e vociferou contra a pontuação, fazendo gestos obscenos. Ouviu-se a voz do ponto eletrônico: “É um palavrão, é um palavrão! Corta, corta!”. Caminhão estava parado no meio da sala diante daquelas imagens. Queria chamar a mulher, mas a voz lhe faltava. “Nossos patrocinadores!”, anunciou Vocativo, em situação difícil no meio do confronto. Com o intervalo forçado, Caminhão conseguiu se mover. Foi até o quarto onde o ponto estava deitado. Abriu a porta e disse para a mulher, ajoelhada ao lado da cama: “Acho que atropelei o Sumo Pontífice”. “Ele abriu os olhos e me chamou de mãe”, disse Palavra-ônibus, emocionada.
[...]

Vitor Ramil, in A primavera da pontuação

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