Certa
manhã pintou-se um quadro negro: uma palavra-caminhão, dessas que
trafegam ameaçadoramente inclinadas, carregadas de letras garrafais,
atropelou um ponto em uma esquina de frases e fugiu. Revoltada, a
pontuação, que a tudo assistira, aglomerou-se no local do acidente.
Exclamações nervosas e interrogações confusas logo instalaram o
caos, provocando um avanço descontrolado de palavras seguido de
grave engavetamento, ao fim do qual uma palavra-pneu rodou na direção
de uma padaria, bateu no meio-fio e, saltando sobre o padeiro,
chocou-se contra o balcão, quebrando o vidro do mostrador e
espalhando palavras-pãezinhos para todos os lados. Um polvilho
finíssimo subiu com força entre estilhaços para depois descer
suavemente sobre os ombros de um guarda-pó, que chegava com o
objetivo de controlar a situação.
Tratando
de não ser seguido, Caminhão costurou e descosturou frases obscuras
e sem fundamento que discorriam do centro em direção à periferia.
Palavra-ônibus, sua mulher, estranhou ao vê-lo chegar em casa. Ele,
que costumava voltar do trabalho apenas para o almoço ou no fim do
dia, seguido sempre de uma exclamação, aparecia desta vez no meio
da manhã e com um desanimado ponto final no para-choque dianteiro.
“Caminhão”, ela perguntou, “aconteceu alguma coisa?” “Algo
horrível: atropelei um ponto”, ele contou, nervoso. “Será este
aqui?”, perguntou ela, mostrando o para-choque. Ele correu para
ver. “Pensei que o havia esmagado ou atirado longe. Parece estar
vivo.” Caminhão carregou o ponto com todo o cuidado e deitou-o na
cama do quarto de hóspedes. Superlativo, o cachorro, pressentindo
alteração na rotina da casa, começou a latir no pátio. Caminhão
pediu à mulher que o fizesse parar: “Ele está chamando atenção.
Ninguém pode saber o que aconteceu”. Superlativo era
inteligentíssimo e, por isso, muito inquieto. Mas era também o mais
obediente dos cachorros. Palavra-ônibus foi até a janela basculante
da cozinha, que dava para o pátio, mandou-o ficar quieto e ele
obedeceu.
No
local do acidente, o guarda-pó percebeu que a confusão era grande
demais e pediu reforço imediato. Enviaram-lhe um guarda-roupa e um
guarda-volumes. Mesmo assim a situação foi ficando fora de
controle, pois a pontuação, que se movimentava com muita rapidez,
estava exaltada além da conta. Exclamações denunciavam aos gritos
a falta de segurança no trabalho. Interrogações questionavam a
competência dos guardas e do governo. Vírgulas intrometiam-se em
todos os grupos, tornando os debates intermináveis. Chegavam pontos
de todas as direções. Tomados de indignação, cada vez mais
alterados, amontoavam-se na esquina, onde, a certa altura, começaram
a protestar com palavras de ordem. A aglomeração atingiu tal
proporção que se formou uma pilha negra e imensa cujo ponto
culminante era o mais inflamado. Colchetes e parênteses começaram a
circundar aquela montanha convulsa numa procissão lenta e contínua.
Dois-pontos e aspas acusavam: “Atropelado”. Reticências se
posicionavam, falando fundo à imaginação: “Desaparecido…”.
Palavra-ônibus
voltou da cozinha trazendo um copo d’água para Caminhão. “A
ironia é que eu estava em ponto morto quando o atropelei”, ele
disse. “Ele não está morto, querido, te acalma.” O ponto não
tinha um só arranhão, mas continuava desacordado. “Quem sabe
chamamos um médico?”, ela propôs. “Não, nem penses nisso.
Serei denunciado e preso. Tu sabes o quanto preciso trabalhar. Se
Deus quiser, o pobre ponto vai despertar e me perdoar. Não tive
intenção de machucá-lo. Os pontos são tão pequenos. E, pra
complicar, às vezes tem-se a impressão de que não vão surgir. Na
parte moderna da cidade parecem ter sido abolidos por lei, de tanto
que não são vistos. Isso confunde quem anda muito de um lado para o
outro. Mas nem foi esse o meu caso. Eu simplesmente tinha pressa. Não
tenho desculpa. Só não sei onde estava com a cabeça quando decidi
fugir. Que grave erro. Agora não posso voltar atrás.” “Vamos
esperar um pouco, então. Afinal, ele parece tão bem, respira
tranquilamente. Vai lá pra sala, descansa; liga a televisão, tenta
pensar em outra coisa. Esse simpático ponto vai despertar sem
demora. É tão jovem. Vou cuidar dele como se fosse um filho. Meu
filho…”, disse a mulher. O quarto de hóspedes estava imerso numa
penumbra acolhedora. Fora preparado originalmente para o primeiro
filho do casal, até eles descobrirem que Palavra-ônibus não podia
engravidar. Caminhão percebeu que a mulher se deixava conduzir por
esse pensamento triste, mas não tentou detê-la. Saiu do quarto, foi
para a sala e ligou a televisão, como ela havia sugerido.
rego
e Latino desceram do automóvel que mantinham em sociedade. Não
podiam acreditar no que estavam vendo. “Passa o monóculo”, pediu
Grego. “Multiforme multidão, aurifulgente caos!”, dizia Latino
para si mesmo, em êxtase, o monóculo vibrando no olho esquerdo.
Grego e Latino eram dois radicais perigosos. Pertenciam aos Compostos
Eruditos, grupo terrorista que atuava na clandestinidade sem nunca
assumir seus atentados nem deixar pistas, e que tinha por objetivo
inocular na sociedade, por meio da educação e da disciplina, uma
cepa dos ideais clássicos desenvolvida por eles com o propósito de
livrar os cidadãos, ou a “prole tarada”, como preferiam dizer,
de barbarismos e outros ismos que a infectavam. A “prole tarada”,
a rigor, era a nação inteira, vista pelos Compostos Eruditos como
vítima de um coloquialismo vulgar e degradante. Se dependesse desses
sediciosos, um dia o latim clássico não só estaria de volta às
igrejas como seria língua franca de quitandas e bordéis; o grego
seria moeda corrente em conversas nas altas esferas intelectuais e
também nos xingamentos dos campos de futebol. Para chegar lá,
defendiam a implantação de um Estado transitório em que o respeito
a uma norma-padrão seria absoluto. Os líderes absolutistas seriam
eles, obviamente, que se preparavam para ser “disciplinadores
iluminados”. Grego e Latino planejavam havia anos desencadear uma
desordem de grandes proporções, que degenerasse em profunda
instabilidade social e criasse as condições necessárias para a
ascensão ao poder de seu líder máximo, Homúnculo, o Grande. Pois
agora a desordem que esperavam estava à sua frente, genuinamente
popular, como jamais fora em seus melhores sonhos. Abandonaram o
automóvel ali, entre tantos outros, e se misturaram aos
manifestantes. “Amigos telespectadores, estamos ao vivo,
transmitindo diretamente do local onde tiveram início as
manifestações que, neste momento, paralisam grande parte do centro
de Ponto Alegre, capital do nosso querido e, até há pouco, pacato
reino de Ponto Alegre”, falava Vocativo, conhecido repórter, ao
microfone da mais importante rede de televisão do país. Ele
tentava, sem sucesso, aproximar-se do local exato do acidente.
“Entrevista o sujeito de monóculo que parou ao teu lado”, disse
o ponto eletrônico no ouvido dele. Vocativo continuou: “Tudo
começou com o atropelamento de um ponto por uma palavra-caminhão
não identificada. A vítima, no entanto, está desaparecida. Vamos
ouvir um cidadão. Senhor, é testemunha do que aconteceu?”. “Não,
mas dizem que a vítima é um ponto cego que costuma pedir esmolas
nesta esquina”, mentiu Grego, sem titubear, explorando sua voz de
barítono, o olho direito brilhando atrás do monóculo que
compartilhava com Latino.
O
telefone do Agente da Passiva tocou. A Passiva era a polícia secreta
do Rei. O povo a apelidara assim e o apelido pegara, pois era sabido
por todos que o Rei não tinha voz ativa nem mesmo em seus nobres
aposentos. O Agente da Passiva fora um sujeito na ativa até pouco
tempo antes. Após passar uma temporada de molho, entrara para a
Passiva, onde começara como agente comum para, depois de uma
ascensão vertiginosa, assumir a diretoria da discreta organização,
que muitos julgavam uma lenda. “Alô”, disse ao aparelho. O
caráter sigiloso de seu trabalho o obrigava, muitas vezes, a se
comunicar de maneira cifrada. “Vem irrompendo a luz”, disse um de
seus verbos auxiliares do outro lado da linha, recomendando ao chefe
que ligasse a televisão. “A luz é muito apreciada por mim. O
vidro da minha janela foi atravessado por seus raios”, respondeu o
Agente da Passiva, dando a entender que já estava a par dos
acontecimentos. Depois de assistir às manifestações por mais um
tempo, colocou seus óculos escuros e ganhou a rua com ares de
aposentado que sai para uma caminhada. Dirigiu-se ao gabinete do
Regente, a quem se reportava agora, devido ao afastamento do Rei, que
se declarara temporariamente impossibilitado de governar – o motivo
alegado por Sua Majestade, e aceito pelo Parlamento, era de ordem
emocional. Chegando lá, o Agente da Passiva evitou a entrada
principal do prédio e encaminhou-se para uma pequena porta lateral,
oculta por uma cerca viva. Anunciou-se com duas pancadas fortes e uma
leve. “A ante…”, alguém disse por uma espécie de respiradouro
no centro da porta. “Até após com contra de desde em entre para
per perante por sem sob sobre trás”, completou o Agente da Passiva
em voz baixa, aproximando o rosto da abertura. Senha confirmada, a
porta foi aberta e ele entrou.
Em
poucas horas as manifestações haviam se espalhado por muitas ruas e
tomado nova conformação. Vocativo continuava a transmitir
diretamente do local: “Amigos telespectadores, recebemos a notícia
de que esse já é o assunto mais comentado nas redes sociais, o que
talvez explique a velocidade espantosa com que o número de
manifestantes vem aumentando. Eles exigem justiça para o caso do
atropelamento do ponto, mas vão além: fazem reivindicações,
principalmente de cunho trabalhista, que apenas de forma indireta
podem ser associadas ao episódio que originou os protestos. Observem
os cartazes improvisados: PELO EMPREGO DE PARÊNTESES; PELO AUMENTO
DO VALOR MELÓDICO; MAIS EMPREGO DA PAUSA, MENOS PAUSA DO EMPREGO;
PELA APROVAÇÃO DO DIVÓRCIO ENTRE SUJEITO E PREDICADO; RESTRIÇÃO
ÀS RESTRITIVAS; A INFLEXÃO É DÉBIL, O SALÁRIO TAMBÉM. Há
escritos não tão sérios, como os bem-humorados ABUSA DA PONTUAÇÃO
QUE A GENTE GOSTA, ENTREI À FORÇA NA MENOSPAUSA ou o que está
estampado na minúscula camiseta daquela desinibida exclamação: OH!
MAIS DESEJO! AH! MAIS ALEGRIA! Não faltam críticas aos políticos e
ao Regente, como na ameaça explícita desta pichação: PODEMOS
ABREVIAR V.EX.as e o SR. REG. Até a mídia, na pessoa deste
apresentador, é alvo de ataque. Reparem no cartaz que uma vírgula
sustenta a meu lado: ISOLEM O VOCATIVO. Aproveito para dizer que
tenho noticiado os fatos com a mais absoluta isenção e…”. “Os
guarda-livros!”, gritou o ponto eletrônico para Vocativo,
interrompendo-o. O apresentador reagiu rapidamente: “A tensão
agora aumenta com a chegada de um enorme contingente de
guarda-livros, que se divide em vários grupos e… olhem isso: eles
passam a investir sobre os manifestantes! Devem ter ordem de
dispersá-los à força. Começa uma grande correria. A pontuação
faz o que pode para escapar da truculência policial, que…”. O
tumulto tornou quase impossível entender o que dizia Vocativo. Ele
parou de falar por alguns instantes. A imagem de um ponto e vírgula
mancando após ser agredido por um guarda-livros foi mostrada
repetidas vezes. A ação paramilitar, espontânea e igualmente
violenta de guardanapos surgidos de restaurantes das redondezas, pôde
ser vista de mais de um ângulo. Alguns manifestantes começaram a
reagir aos guardas usando travessões. Dois deles – guarda-livros –
estavam cercados por travessões duplos. Um brutamontes cabeludo
aproximou-se da câmera e vociferou contra a pontuação, fazendo
gestos obscenos. Ouviu-se a voz do ponto eletrônico: “É um
palavrão, é um palavrão! Corta, corta!”. Caminhão estava parado
no meio da sala diante daquelas imagens. Queria chamar a mulher, mas
a voz lhe faltava. “Nossos patrocinadores!”, anunciou Vocativo,
em situação difícil no meio do confronto. Com o intervalo forçado,
Caminhão conseguiu se mover. Foi até o quarto onde o ponto estava
deitado. Abriu a porta e disse para a mulher, ajoelhada ao lado da
cama: “Acho que atropelei o Sumo Pontífice”. “Ele abriu os
olhos e me chamou de mãe”, disse Palavra-ônibus, emocionada.
[...]
Vitor Ramil, in A primavera da pontuação
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