[...]
Na
vila o clima do outono impregnava o ar. Quando a grama eulália
começasse a produzir espigas, os homens iniciariam a pesca dos
pequenos polvos de outono que se aproximavam da costa. Tratava-se de
uma iguaria que podia ser consumida crua ou cozida. Algumas pessoas
os salgavam e secavam, cortando-os ao meio e pendurando-os em fios
presos a varas.
As
folhas adquiririam a coloração outonal depois que esses pequenos
polvos aparecessem, e os habitantes da vila seriam tomados pelo
sentimento de antecipação ao ver as montanhas começando a ficar
vermelhas.
O
mar ficaria mais agitado quando as cores do outono desbotassem e as
folhas começassem a cair. Se houvesse dois dias de calmaria, os dias
seguintes seriam marcados por um mar revolto, com ondas imensas que
lançariam borrifos de água sobre as casas. Mas às vezes o mar
bravio trazia presentes inesperados, bem mais generosos que qualquer
coisa vinda da praia ou dos campos pobres, a ponto de ninguém
precisar ser vendido como servo durante anos. Tais presentes eram
muito raros, mas as pessoas viviam com esperança constante. As cores
de outono iniciavam o período em que a vila poderia ser abençoada
por essa boa sorte.
A
fila de pessoas voltou a avançar, os olhos ainda voltados para o
topo das montanhas. Isaku olhou para o mar ao descer pela trilha. Na
maré baixa, as pedras no fundo do promontório de extremidades
agudas ficavam expostas e, adiante da vila, certa distância mar
adentro, as pontas rochosas podiam ser vistas se projetando para fora
da água espumante.
O
mar perto da costa mascarava um trecho intrincado de recifes —
habitação de polvos e mariscos, um paraíso para os peixes. Algas
marinhas ondulavam de um lado para outro, presas às rochas. Os
homens pescavam em barcos pequenos enquanto as mulheres e crianças
recolhiam algas e mariscos por entre as pedras. O mar ao redor do
recife não só era uma preciosa área de pesca que sustentava a vila
mas também uma fonte de luxos como comida, dinheiro, roupas e
utensílios domésticos. Mas tais maravilhas apareciam durante dois
ou três anos sucessivos e depois não ocorriam novamente senão dali
a dez anos. A última vez fora seis anos atrás, no início do
inverno, quando Isaku estava com três anos de idade.
A
memória dele desse período de sua infância era bastante difusa,
mas lembrava-se claramente do incidente. Todos na casa ficaram
alegres, algo bastante incomum. Seus pais e todas as outras pessoas
da aldeia estavam sempre sorrindo, as faces coradas de excitação.
Ele se recordava que a atmosfera estranha o assustara tanto que ele
começara a chorar.
Fazia
dois anos que Isaku compreendera o significado por trás da excitação
que tomara conta dos habitantes da vila. Como de costume, quando as
cores de outono chegavam, a vila inteira participava de uma cerimônia
que impressionava Isaku. Ele perguntara a um garoto de sua idade
chamado Sahei do que se tratava.
— Você
não sabe? — disse Sahei, olhando para ele com desprezo.
Sentindo-se
envergonhado, Isaku perguntou à mãe quando chegou em casa.
— O-fune-sama
— foi a resposta. Isaku ficou perplexo.
— Olhe,
aquela tigela ali veio de O-fune-sama — disse a mãe,
obviamente irritada ao olhar para a prateleira.
Isaku
olhou para a tigela com outros olhos. Era diferente das outras cuias
e tigelas de aspecto rústico que não passavam de pedaços de
madeira escavados. Aquela era muito fina e de espessura uniforme.
Parecia ter sido esmaltada, pois a superfície vermelha da madeira
brilhava e havia duas finas linhas douradas bem perto da borda.
Aquela tigela era usada apenas para a comida que era colocada diante
das placas dos ancestrais no Ano-Novo e no Festival Bon; no resto do
tempo ela permanecia na prateleira.
A
mãe de Isaku não disse mais nada.
Ele
não tinha ideia de que ligação poderia haver entre a tigela e o
ritual da aldeia, e foi Sahei, que antes havia zombado de sua
ignorância, quem lhe contou sobre O-fune-sama e o significado
da tigela de madeira. Sahei disse que O-fune-sama se referia
aos barcos que naufragavam nos recifes próximos à vila. Essas
embarcações normalmente carregavam mantimentos, utensílios, peças
de luxo e roupas, que podiam melhorar de forma substancial a vida dos
moradores da aldeia. Além disso, pedaços da madeira dos barcos
partidos pelas rochas e pelas ondas, que iam parar na praia, podiam
ser usados para reparar as casas, ou mesmo para fazer móveis. O
ritual da aldeia do final do outono era realizado na esperança de
que algum barco colidisse com um recife.
— Então
você também não sabe sobre a caverna na Praia do Corvo? — disse
Sahei de forma condescendente ao voltar o olhar para o sul. Ali
ficava o pequeno cabo que se lançava mar adentro, definido pela
espuma branca das ondas que arrebentavam contra ele. Era comum ver
corvos circulando no céu acima dos pequenos pinheiros que cresciam
na parte mais alta do cabo.
— Ouvi
falar da caverna. Você está falando do lugar onde eles jogam os
corpos que vêm parar na praia — disse Isaku de modo agressivo.
— Não
só os que aparecem na praia. É também onde eles jogam os corpos da
tripulação de O-fune-sama — disse Sahei com uma contorção
no rosto.
Isaku
esforçou-se para compreender o sentido do que Sahei lhe dizia,
embora já tivesse entendido o significado do ritual e da tigela
esmaltada.
Ele
ficou impressionado novamente com as memórias de quando tinha três
anos de idade. E por fim compreendeu que seu pai, sua mãe e os
outros da vila tinham ficado alegres daquele jeito porque O-fune-sama
tinha vindo naquele ano. Ele se lembrava de que nos dois anos
seguintes provara alimentos diferentes e saborosos, e vira objetos
igualmente raros e incríveis.
Em
ocasiões de festa, ou quando ocorria uma morte na aldeia, sua mãe
pegava arroz de um pote de cerâmica e fazia uma espécie de sopa
para ele. Quando ficava com febre, ela trazia com todo o cuidado uma
vasilha e deixava-o lamber uma substância branca de seu dedo. Diziam
que aquele pó incrivelmente doce, chamado açúcar branco, também
era bom para curar qualquer doença.
A
luz da vela que ele vira na noite do Festival Bon também ficara
gravada em sua memória. Era uma peça cinza, com o formato de um
bastão fino com quase dez centímetros de comprimento, e lembrava-se
de sua emoção quando o pavio fora aceso. Era tão incrivelmente
brilhante que ele ficara fascinado. Como podia um bastãozinho assim
gerar tanta luz? Além disso, ao contrário das tochas de pinheiro e
pavios empapados em óleo de peixe, não soltava fumaça escura, e o
cheiro até que era agradável. Tinha um brilho muito bonito, às
vezes tremulando um pouco, lançando minúsculas fagulhas de luz ao
redor da sala.
Aquelas
duas coisas eram sem dúvida parte das dádivas de O-fune-sama,
mas tinham acabado muito depressa.
Ainda
assim, alguns vestígios dessa boa sorte ainda se encontravam
presente: a velha esteira em frente à porta da casa ao lado, o baú
na casa central da vila com a insígnia de uma companhia de
transporte marítimo. Além disso, em algumas casas havia os grandes
baldes de madeira usados para apagar incêndios nos navios. Estava
claro agora que, assim como a tigela laqueada na casa de Isaku, tudo
isso vinha de O-fune-sama.
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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