sexta-feira, 17 de março de 2023

Naufrágios | Capítulo 1

[...]
Na vila o clima do outono impregnava o ar. Quando a grama eulália começasse a produzir espigas, os homens iniciariam a pesca dos pequenos polvos de outono que se aproximavam da costa. Tratava-se de uma iguaria que podia ser consumida crua ou cozida. Algumas pessoas os salgavam e secavam, cortando-os ao meio e pendurando-os em fios presos a varas.
As folhas adquiririam a coloração outonal depois que esses pequenos polvos aparecessem, e os habitantes da vila seriam tomados pelo sentimento de antecipação ao ver as montanhas começando a ficar vermelhas.
O mar ficaria mais agitado quando as cores do outono desbotassem e as folhas começassem a cair. Se houvesse dois dias de calmaria, os dias seguintes seriam marcados por um mar revolto, com ondas imensas que lançariam borrifos de água sobre as casas. Mas às vezes o mar bravio trazia presentes inesperados, bem mais generosos que qualquer coisa vinda da praia ou dos campos pobres, a ponto de ninguém precisar ser vendido como servo durante anos. Tais presentes eram muito raros, mas as pessoas viviam com esperança constante. As cores de outono iniciavam o período em que a vila poderia ser abençoada por essa boa sorte.
A fila de pessoas voltou a avançar, os olhos ainda voltados para o topo das montanhas. Isaku olhou para o mar ao descer pela trilha. Na maré baixa, as pedras no fundo do promontório de extremidades agudas ficavam expostas e, adiante da vila, certa distância mar adentro, as pontas rochosas podiam ser vistas se projetando para fora da água espumante.
O mar perto da costa mascarava um trecho intrincado de recifes — habitação de polvos e mariscos, um paraíso para os peixes. Algas marinhas ondulavam de um lado para outro, presas às rochas. Os homens pescavam em barcos pequenos enquanto as mulheres e crianças recolhiam algas e mariscos por entre as pedras. O mar ao redor do recife não só era uma preciosa área de pesca que sustentava a vila mas também uma fonte de luxos como comida, dinheiro, roupas e utensílios domésticos. Mas tais maravilhas apareciam durante dois ou três anos sucessivos e depois não ocorriam novamente senão dali a dez anos. A última vez fora seis anos atrás, no início do inverno, quando Isaku estava com três anos de idade.
A memória dele desse período de sua infância era bastante difusa, mas lembrava-se claramente do incidente. Todos na casa ficaram alegres, algo bastante incomum. Seus pais e todas as outras pessoas da aldeia estavam sempre sorrindo, as faces coradas de excitação. Ele se recordava que a atmosfera estranha o assustara tanto que ele começara a chorar.
Fazia dois anos que Isaku compreendera o significado por trás da excitação que tomara conta dos habitantes da vila. Como de costume, quando as cores de outono chegavam, a vila inteira participava de uma cerimônia que impressionava Isaku. Ele perguntara a um garoto de sua idade chamado Sahei do que se tratava.
Você não sabe? — disse Sahei, olhando para ele com desprezo.
Sentindo-se envergonhado, Isaku perguntou à mãe quando chegou em casa.
O-fune-sama — foi a resposta. Isaku ficou perplexo.
Olhe, aquela tigela ali veio de O-fune-sama — disse a mãe, obviamente irritada ao olhar para a prateleira.
Isaku olhou para a tigela com outros olhos. Era diferente das outras cuias e tigelas de aspecto rústico que não passavam de pedaços de madeira escavados. Aquela era muito fina e de espessura uniforme. Parecia ter sido esmaltada, pois a superfície vermelha da madeira brilhava e havia duas finas linhas douradas bem perto da borda. Aquela tigela era usada apenas para a comida que era colocada diante das placas dos ancestrais no Ano-Novo e no Festival Bon; no resto do tempo ela permanecia na prateleira.
A mãe de Isaku não disse mais nada.
Ele não tinha ideia de que ligação poderia haver entre a tigela e o ritual da aldeia, e foi Sahei, que antes havia zombado de sua ignorância, quem lhe contou sobre O-fune-sama e o significado da tigela de madeira. Sahei disse que O-fune-sama se referia aos barcos que naufragavam nos recifes próximos à vila. Essas embarcações normalmente carregavam mantimentos, utensílios, peças de luxo e roupas, que podiam melhorar de forma substancial a vida dos moradores da aldeia. Além disso, pedaços da madeira dos barcos partidos pelas rochas e pelas ondas, que iam parar na praia, podiam ser usados para reparar as casas, ou mesmo para fazer móveis. O ritual da aldeia do final do outono era realizado na esperança de que algum barco colidisse com um recife.
Então você também não sabe sobre a caverna na Praia do Corvo? — disse Sahei de forma condescendente ao voltar o olhar para o sul. Ali ficava o pequeno cabo que se lançava mar adentro, definido pela espuma branca das ondas que arrebentavam contra ele. Era comum ver corvos circulando no céu acima dos pequenos pinheiros que cresciam na parte mais alta do cabo.
Ouvi falar da caverna. Você está falando do lugar onde eles jogam os corpos que vêm parar na praia — disse Isaku de modo agressivo.
Não só os que aparecem na praia. É também onde eles jogam os corpos da tripulação de O-fune-sama — disse Sahei com uma contorção no rosto.
Isaku esforçou-se para compreender o sentido do que Sahei lhe dizia, embora já tivesse entendido o significado do ritual e da tigela esmaltada.
Ele ficou impressionado novamente com as memórias de quando tinha três anos de idade. E por fim compreendeu que seu pai, sua mãe e os outros da vila tinham ficado alegres daquele jeito porque O-fune-sama tinha vindo naquele ano. Ele se lembrava de que nos dois anos seguintes provara alimentos diferentes e saborosos, e vira objetos igualmente raros e incríveis.
Em ocasiões de festa, ou quando ocorria uma morte na aldeia, sua mãe pegava arroz de um pote de cerâmica e fazia uma espécie de sopa para ele. Quando ficava com febre, ela trazia com todo o cuidado uma vasilha e deixava-o lamber uma substância branca de seu dedo. Diziam que aquele pó incrivelmente doce, chamado açúcar branco, também era bom para curar qualquer doença.
A luz da vela que ele vira na noite do Festival Bon também ficara gravada em sua memória. Era uma peça cinza, com o formato de um bastão fino com quase dez centímetros de comprimento, e lembrava-se de sua emoção quando o pavio fora aceso. Era tão incrivelmente brilhante que ele ficara fascinado. Como podia um bastãozinho assim gerar tanta luz? Além disso, ao contrário das tochas de pinheiro e pavios empapados em óleo de peixe, não soltava fumaça escura, e o cheiro até que era agradável. Tinha um brilho muito bonito, às vezes tremulando um pouco, lançando minúsculas fagulhas de luz ao redor da sala.
Aquelas duas coisas eram sem dúvida parte das dádivas de O-fune-sama, mas tinham acabado muito depressa.
Ainda assim, alguns vestígios dessa boa sorte ainda se encontravam presente: a velha esteira em frente à porta da casa ao lado, o baú na casa central da vila com a insígnia de uma companhia de transporte marítimo. Além disso, em algumas casas havia os grandes baldes de madeira usados para apagar incêndios nos navios. Estava claro agora que, assim como a tigela laqueada na casa de Isaku, tudo isso vinha de O-fune-sama.

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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