sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Cartas para minha avó

Anos após a morte da minha mãe e do meu pai, me questiono se de fato minha mãe viveu o amor, mesmo no início do casamento. Não tenho condições de emitir juízo moral, nem quero, mas me ponho a refletir.
Uma vez, minha mãe me disse que saiu de uma escravidão para entrar em outra, referindo-se ao fato de ter deixado o trabalho de empregada doméstica em São Paulo para casar e se tornar dona de casa. Essa frase é de uma profundidade perturbadora.
De fato, minha mãe cozinhou, lavou e passou a vida toda. Seus dias eram trabalhar, seja cuidando da casa dos outros, seja cuidando da nossa casa. Depois de casar, em vez de cumprir as ordens do patrão, ela precisava realizar os desejos do meu pai. O feijão tinha que ser feito na hora e temperado com linguiça e toucinho, ela não podia fazer grandes quantidades e congelar. O arroz precisava estar bem soltinho e temperado somente com alho, sem cebola. As camisas precisavam estar extremamente bem passadas e alinhadas. Tudo seguia um ritmo calculado e impositivo.
Talvez seu casamento com meu avô tenha se baseado num sistema semelhante, vó. Quando meu pai precisava pegar o turno da madrugada, minha mãe acordava para servi-lo, mesmo quando estava doente, estafada ou quando não sentia a mínima vontade. Enquanto separava os pães, pegava a manteiga, talvez pensasse “eu tenho que fazer porque ele já fez muito”. A sensação de gratidão imposta pela subalternidade. Aquele amor veiculado pelos programas de tv — que supostamente ajudam as pessoas pobres —, subordinado, que sempre coloca a mulher numa posição de retribuição, de agradecimento. Na primeira tentativa de libertação, porém, corre-se o risco de ser taxada de ingrata.
Sabe, vó, a dureza na sua casa fez com que minha mãe desejasse viver uma vida diferente. Foram alguns anos vivendo no quarto de empregada até aquele Carnaval em Santos, quando ela conheceu meu pai. Hoje penso se minha mãe realmente se apaixonou à primeira vista ou se ela se entregou ao primeiro olhar que se mostrou cúmplice, aos primeiros ouvidos que a escutaram, às primeiras mãos consoladoras, aos primeiros abraços que a afagaram — e chamou isso de amor. Ela realmente pode ter amado perdidamente ou pode ter sonhado com o amor. Pode ter se entregado não porque estava sentindo amor ou paixão, mas porque o cenário criado é tão inebriante que a embriagou de amor. A gente se apaixona por uma ideia de amor e a persegue a vida inteira, se frustrando por viver apenas um esboço dela. A ideia, porém, jamais nos abandona, mesmo causando dor. Será que foi isso que aconteceu, vó? Não sei, não tive tempo de saber.
Uma jovem mulher, sem a família por perto, sobrevivendo aos assédios do patrão, sentindo-se solitária, pode ter se entregado e sonhado com uma vida na qual alguém finalmente a protegeria. E aguentou tanta coisa em busca desse sonho perdido. Tinha que provar que deu certo para contradizer as más línguas.
Na maioria das vezes, o amor não é apenas sentimento, mas também ideologia. Condiciona-se o olhar, o sentir. Por que se ama a branca e não a negra? Olhares condicionados e submissos a uma ideologia, à melancólica valorização dos traços finos. É muito difícil encontrar olhares sinceros e destreinados. Foram várias as vezes em que vi minha mãe chorando por causa das traições do meu pai. Após um tempo, eu não sei se as lágrimas caíam pelo adultério em si ou pela destruição do sonho daquela moça de interior que só queria ser amada pelo homem que conheceu em um baile de Carnaval.
Mesmo sendo infeliz na vida a dois, quando o casamento terminou, minha mãe ficou extremamente triste. Eu discordei da forma como aconteceu, já que meu pai não lhe deu nenhum suporte financeiro, mas o divórcio em si não me entristeceu. Eu fiquei triste porque minha mãe havia criado uma ideia de relacionamento, acreditado na segurança do matrimônio, na sua manutenção, permanência e imutabilidade. Ela contava com meu pai para lhe trazer felicidade, vó. Foi assim que aprendeu e viveu. Foi difícil pra ela lidar com as fofocas e ter que enfrentar a doença sem um companheiro ao lado.
Meu pai, por sua vez, idealizou uma mulher na cabeça dele e exigiu que a esposa fosse exatamente como ele queria, deixando de enxergar quem ela era de fato.
Não é necessariamente o amor que prende, vó, é o hábito. O jantar no sábado à noite para fugir do tédio, o almoço na casa da sogra no domingo, a festa do amigo da filha mais nova. Coisas…
Ela se sentia presa, incomodada, infeliz, mas preferia discutir porque o som da tv estava muito alto. Ela reclamava de um quadro milimetricamente torto, brigava porque não havia gostado do piso que meu pai escolheu quando finalmente reformou a casa. Era melhor discutir sobre o rasgo no sofá do que falar das mágoas acumuladas. Parecia que eles discutiam por motivos fúteis, mas nada é trivial quando se trata de um casamento cheio de não ditos e dores — nem chorar por um desentendimento banal e extravasar em lágrimas as frustrações de uma vida sem sentido. Nessas situações, o frívolo é a superfície de algo muito profundo.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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