D
Sentado
à mesa de um bar, como é do meu hábito. Diante de mim um copo de
cerveja, loiro e cheio de dignidade. No muro em frente um filósofo
escreveu, em grandes letras, a palavra suprema: MERDA, que vibra ao
sol da manhã como um grande sino convocando os infiéis a um sabbat
sem precedentes, com baionetas caladas em vez de vassouras e o bode
preto substituído pela face mansa e apostólica de um buda de
marfim.
Estou
mais lúcido do que uma nota tocada ao piano, e meus dedos são dez
antenas voltadas para os dez mandamentos da lei antimosaica e que um
dia dominarão o mundo, no verdadeiro dia do Juízo Final. Estou mais
bíblico do que são João em Patmos, e o meu silêncio é uma harpa
eólia que o vento da manhã só torna audível aos que sintam comigo
a gravidade da hora presente, banhada de sangue inocente e do pranto
das viúvas e dos órfãos.
A
um passo de minha sombra, o rio dos transeuntes subindo e descendo a
rua ardente, rumo ao sul, rumo ao norte, desorientados apesar do
guarda de trânsito que na esquina lhes aponta o bom caminho,
servindo-se para isso de um cassetete. Um cavalo cego, puxado por um
velho de barbas proféticas, estaca por um instante diante dos meus
dedos transformados em signos do zodíaco, mas o velho lhe dá com o
chicote no meio da testa e ele se esquece de sua nobre condição de
cavalo, seguindo o outro com o andar quase marcial que lhe impõem as
pedras da rua. Seria tão mais fácil cair morto sobre as botinas do
seu dono e algoz, aos olhos estupefatos dos sobreviventes da última
mas não derradeira revolução, em vez de...
A
cerveja sabe-me a urina de defunto, mas não sou suficientemente rico
para jogá-la à cara do garçom e pedir em troca uma garrafa de
champanha, com rolha e tudo, embora tenha vendido a um camelo de
esquina meu fuzil-metralhadora com apenas uma cápsula deflagrada. Em
tempos normais eu teria enriquecido facilmente, com um argumento tão
bom como é e sempre foi um fuzil-metralhadora a tiracolo, mas o dia
de hoje é claro e quase pacífico, e nem sequer é carnaval para eu
andar vestido de anarquista feroz pelas ruas policiadas e dedetizadas
de uma metrópole, muito embora...
Devo
ter meus cinquenta anos, a julgar pela carne flácida que sinto
quando passo as mãos pelo rosto e em volta do pescoço, num gesto
muito meu e que também foi de meu pai. (Aliás, copio meu pai em
muitos gestos e atitudes impensadas, e até mesmo na entonação da
minha voz, como penso ocorrer com a maioria dos filhos legítimos e
ilegítimos, inclusive entre os ratos e os gafanhotos.) Mas a minha
idade não tem muita importância, contanto que eu não me olhe ao
espelho, e o que vale é esta juventude perene e esse contínuo
assombro em que me vejo diante das coisas do mundo, sobretudo das
coisas invisíveis e mais certas, como Deus por exemplo e seu
partenaire, o diabo. Com cinquenta ou cem anos sinto-me mais jovem do
que uma criança recém-nascida, e disso dão prova minha gargalhada
fácil e meus dedos ágeis sobre a mesa, mais ágeis do que as
formigas de Maeterlinck. Só me sentirei velho depois de morto, e
assim mesmo por causa dos vermes e das mãos atadas por sobre o
ventre, esse mesmo ventre já não me pertencerá mais e sim ao
diabo, ao qual vendi minha alma antes dos vinte anos. (De passagem:
conheço velhos que têm apenas doze anos no registro civil e que se
envergonhariam se vissem minha juventude cinquentenária e cheia de
blasfêmias, eles que nunca blasfemaram em sua vida, nem mesmo em
sonho.)
O
garçom tem cara de mentecapto, mas isto não me afeta grande coisa,
como de resto não me afeta nada de nada neste mundo, e espero também
no outro. Cara de mentecapto tem todo mundo, com perdão da palavra,
sobretudo se se está apaixonado ou simplesmente faminto, como é o
meu caso nesta manhã azul. O homem é por natureza mentecapto, como
o é o galo e mais precisamente ainda o zangão diante da
abelha-rainha, e o que o faz assim é principalmente o seu poderoso
sexo, com cabelo e tudo. Enquanto a fêmea for fêmea e o macho for
macho, a inteligência do homem será apenas uma figura de retórica,
e a sua imagem no espelho será isto que estou vendo na cara do
garçom, por mais penoso que me seja dizê-lo. Resta o recurso do
suicídio, se é que isso seja realmente uma solução.
Preciso
escrever uma infinidade de livros para desintoxicar-me, e as minhas
espinhas são os livros que não escrevi até hoje, embora já tenha
escrito muitos. A palavra foi dada ao homem para blasfemar contra o
seu destino, e a palavra escrita é a verdadeira palavra, como o
defunto é o único homem verdadeiro, em sua mudez total. (Mudez ou
nudez, leiam como quiserem).
O
dia mais feliz da minha vida foi o dia em que escrevi minha primeira
palavra feia no muro alto do colégio — exatamente essa bela
palavra MERDA que agora me fita do outro lado da rua, como um
desafio. MERDA é tudo que não seja a morte, que talvez também o
seja, e disso sempre tiveram consciência os homens menos mentecaptos
em seus momentos de maior lucidez, e que são poucos. Merda é a
própria vida, mero eufemismo para uso dos salões elegantes e dos
tratados diplomáticos, que também são uma merda como tudo mais,
como sempre o foram e o serão até o fim dos tempos. Proponho mesmo
que, em lugar dos nomes dos países, se diga simplesmente: Merda n.°
1, Merda n.° 2, e assim por diante, chamando-se aos Estados Unidos a
capital de todas as merdas, como de fato eles o são.
Que
o otimismo é uma grande coisa não resta a menor dúvida, como o é
também a santidade, dentro ou fora da Igreja Católica Apostólica
Romana. Só que não é otimista quem quer, ao contrário do que
pregam os norte-americanos, como não se é santo pela simples
extirpação dos testículos ou pelo desejo acirrado de servir ao
próximo, mesmo quando se trate de nosso maior inimigo. Ou se nasce
inocente ou não se nasce, e a inocência, que rima com
inconsciência, é a chave de todo o segredo do santo como do
otimista, e nem toda a riqueza do mundo é capaz de pagar o seu
preço. Se não consigo ser otimista é porque igualmente não
consigo ser menos calvo do que sou, ou menos baixo de estatura, ou
ainda menos feio do que pareço diante do espelho. O resto é
psicologia de ginásio e receita de milagreiros que nem sequer sabem
do que é feita a alma do homem, confundindo-a com o ar dos seus
pulmões ou dos seus intestinos, invisível aos raios X.
Se
o otimismo se vendesse a peso de ouro, eu o compraria por todo o ouro
do mundo e ainda daria de contrapeso o destino de minha alma imortal,
já que por muito menos a entreguei um dia ao diabo, que tem fama de
bom cobrador. O que me enfeia é justamente este ar de repugnância e
tédio que, digam o que quiserem, já trago de nascença e que ficará
estampado na face do meu cadáver, como o ficou em Leopardi e em
outros cidadãos que nem depois de mortos se traíram. Ao sacerdote
que me venha encomendar o corpo peço que respeite ao menos esse
ricto de pura náusea que por certo lhe há de causar escândalo, e
que os parentes, se os tenho, atribuirão ao lenço amarrado no
queixo ou a simples ilusão de óptica, mesmo porque não lhes
poderei cuspir no rosto em prova do contrário.
Mas
a manhã é azul demais, e eu, sem o meu fuzil, sinto-me impotente
diante da beleza do céu e da feiura dos homens que impudicamente se
exibem aos meus olhos, sobretudo do guarda armado de cassetete e com
ar de soberano pontífice, que dirige o trânsito das almas no meio
da rua. E como o lugar do covarde é debaixo da cama, junto do urinol
e das baratas, vou procurar um albergue da boa vontade onde me possa
deitar no lugar que me compete, enquanto não passe este pessimismo
doentio de que me sinto possuído, tal como um xifópago que de
repente se dispusesse a meter uma bala na cabeça sem ao menos
consultar seu companheiro adormecido.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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