II
Onde
mordeu o marimbomdo, naquele dia de chuva, tem uma marca que não vai
sair mais. É um pouco em cima do joelho e o Zeca mostra sempre. Mas
a outra, aquela do chumbo do menino Nanito, filho do polícia, essa o
Zeca esquiva. Desculpa que é preciso baixar os calções, mas a
gente sabe: o rapaz não quer que lhe façam pouco. É verdade que
chumbo no mataco não é muito de mostrar mas a culpa é dele, que
gosta contar os casos. Não é bem como ele fala, que sucedeu: o
Zeca, cadavez que conta, mete sempre as partes dele e, quando a gente
vai ver, ninguém sabe mais onde está a verdade e onde está a
mentira.
1.
Foi
num dia que nasceu com azar.
Ainda
não eram cinco horas, escuro mesmo, quando uma grande confusão
começou lá no musseque. Os gritos vinham da cubata da Albertina mas
ninguém que se levantou logo, os vizinhos já estavam acostumados.
Cada homem que ela arranjava lhe dava porrada, era sempre o mesmo
caso: depois de alguns meses de viverem lá em casa, comerem à custa
da pobre, beberem à custa da pobre, uma carga de surra, maleta na
mão e nunca mais ninguém lhes via. Só porque Albertina queria um
filho, falava que estava se sentir muito sozinha e, sempre que pedia,
tinha aquelas discussões e pancadas.
Nesse
dia, quando a manhã acordou, o barulho era maior, diferente, os
gritos se prolongaram em gemidos e a vizinhança começou dar mais
importância, adiantou sair, aproximando-se, curiosos e preocupados,
da cubata. Albertina andara segredando, sorridente, que já tinha
mais de dois meses, conversando com sá Domingas e don’Ana, mães
já antigas, mesmo com dona Branca, mãe do Zeca, que, no princípio,
estava dizer mulher que dorme com todos não é para ter filhos. Esse
segredo foi guardado nas vizinhas, só algumas meninas mais velhas
sabiam e, por isso, naquela manhã todas se chegaram medrosas,
pensando azar.
A
coitada da Albertina lá estava, rebolando no chão do quarto,
torcendo parecia era cobra mesmo gorda como era e o sangue descia nas
pernas, sujava a combinação, o cimento. Don’Ana é que adiantou
entrar, acendeu o candeeiro e nenhuma menina nem miúdo que deixaram
ver também. Os mais-velhos não aceitaram, fecharam logo a porta. Só
sentimos os gemidos, as vozes a falar baixo, esses assuntos a gente
não percebia bem, barulho de porem a Albertina na cama dela e, mais
tarde, nem mesmo deixaram nos espiar quando meteram a branca na
carrinha dos bombeiros.
Essa
confusão do princípio do dia falaram-lhe muito na hora do
matabicho, antes dos homens partirem no serviço e os monas saírem
para brincar. Depois, chamadas nos seus trabalhos de todos os dias,
as mulheres calaram o assunto. Só que, lavando ou cozinhando,
lamentavam a pobre da Albertina que queria um filho e acabava sempre
com a confusão. As meninas Carmindinha e Tunica, batucando o fundo
das latas, já tinham passado para buscar água e da casa de sá
Domingas só vinha a cantiga da senhora batendo a roupa na selha,
quando o Zeca Bunéu chegou para a brincadeira e deu encontro seus
amigos conversando o assunto.
— Não
acreditas? Minha irmã viu mesmo. Toda nua, rebolar no chão. Parece
é o batalhão lhe pisou com as botas na barriga!
E
miúdo Xoxombo batia com o pé descalço para mostrar no Biquinho,
ele não queria lhe acreditar. É verdade sô Américo era mesmo um
tropa, mas um homem de verdade não pode fazer isso.
— Te
digo. Parece é ela já tinha o filho dele na barriga e ele não
queria...
— Ená!
Mas estava toda nua? — perguntou, rindo os dentes todos, o Zito.
— Sukuama!
Sempre a pensar as coisas podres! Cala-te a boca, mas é!
Aí
o Zeca aproveitou para entrar logo a dizer que só ele é que sabia,
tinha visto mesmo a Albertina torcendo-se no chão e a cara dela
branca, branca, parecia era papel, quando lhe meteram na carrinha dos
bombeiros. Puxou seu jeito de contar, mas agora sério, falando que
homem que pisa na mulher não é homem, mesmo se é mulher de todos,
não tem diferença.
Sentados,
chupando as gajajas madurinhas tiradas com as pedradas, deixavam o
tempo correr assim, nada que lhes distraía naquela hora desse
assunto da Albertina e do mistério que tinha essa doença dela, cada
qual queria pôr sua opinião mas, no fim, tudo ficava na mesma:
ninguém que sabia, não adiantava falar à toa.
— Xoxombo!
Xoxomboéé! Vem cá!...
Sá
Domingas estava na porta, o quimone solto sobre as mamas grandes
balançando, chamando, zangada. O menino levantou dum salto, deixou a
fisga no Zito e saiu nas corridas. Zeca Bunéu, Zito e Biquinho
ficaram a mirar, conheciam bem aquele chamamento, se calhar ia-lhe
pôr jindungo, tinha ouvido mesmo o menino falar aquelas conversas da
Albertina nua. Esse Xoxombo não tem cuidado, bem que se lhe avisa,
mas nada. Agora pronto! Os gritos do miúdo, o barulho das pancadas,
a voz zangada de sá Domingas chegaram debaixo do pau.
— Aiuê,
aiuê, mam’etuê! Nakuetuéé!
— Seu
mal-educado, já se viu! Toma!
Ouvia-se
aquele barulho conhecido do pau de funji nas mãos, no mataco e o
Xoxombo a berrar parecia era cabrito. Sá Domingas falava o castigo,
batia zangada e sentia-se o filho a correr dentro da casa, tropeçando
nas coisas. A voz dela a ralhar e o choro soluçado do Xoxombo
puseram medo nos amigos. Mamã Domingas abriu a porta, ameaçou, deu
berrida:
— Mal-educados!
E esse cangundo é o pior. Aposto é ele quem andou escrever essas
coisas no Xoxombo. Ngueta sem educação!
Já
se sabia! Tudo quanto aparecia de malandragem lá no nosso musseque
era sempre o Zeca Bunéu. Pronto! Naquela manhã já não tinha mais
o Xoxombo para brincar. E logo nesse dia que o Zeca trazia a caixa de
fósforos com um quissonde grande só para lutar com o cafuca do
Xoxombo. Azar!
Tristes,
saíram pelo capim acima, experimentando a pontaria nas garrafas
vazias e durante o resto da manhã se perderam pelos cajueiros e
muxixes zunindo pedradas nos pássaros. Só onze horas, quando
Carmindinha e Tunica passaram para baixo com as latas da água na
cabeça, é que foram devagarinho até no quintal e chamaram o
companheiro. Sentado numa pedra, soluçando ainda com a raiva dele,
Xoxombo fazia desenhos no chão com um bocado de catandú. Sá
Domingas estava lá dentro com as filhas para adiantar fazer almoço
e aí aproveitaram para lhe chamar:
— Xoxombo!
Xoxomboéé!!
O
menino levantou, cauteloso, veio devagarinho e encostou nas aduelas.
Biquinho pediu:
— Xoxombo,
empresta ainda o teu cafuca para lutar no quissonde do Zeca.
— Não
empresto nada. Vão à merda!
— Xoxombo,
mas a gente te fez mal? Diz só, te fizemos mal?
Xoxombo
abanou a cabeça para responder:
— O
sacana do Nanito m’aldrabou-me. Mas logo-logo rebento-lhe as fuças,
vai ver! Juro sangue de Cristo!
Fez
as cruzes do cuspo na mão, mas não emprestou o cafuca. Que não
senhor, era um mestre, tinha-lhe custado a apanhar e quando ia sair,
de tarde, queria pelejar no quissonde do Zeca e dar-lhe uma surra.
— Mas
Xoxombo, conta então. Nanito fez é o quê?
O
menino pôs cara de mau e, sempre a soluçar, foi falando em voz
baixa:
— O
Nanito estava comer abacate dele, depois me perguntou-me: “Xoxombo,
queres um brinquedo?” Aí eu disse: “Sim.” Então o gajo pôs o
caroço do abacate no bolso da minha bata e disse: “Eu desenho
agora cá fora o brinquedo que tu queres e logo à noite tu encontras
no bolso.”
Zeca
Bunéu desatou a rir e o Xoxombo também queria rir mas os soluços
atrapalhavam-lhe.
— Xê,
seu burro! Então não sabias abacate põe nódoa, não sai mais?
— Esqueci,
naquela hora. Rebento-lhe as fuças. O sacrista desenhou mesmo uma
asneira!
E,
olhando para dentro de casa, disse em voz baixa o nome do desenho.
Uma gargalhada de todos saltou para dentro do quintal e entrou pela
cubata, provocando. Na zuna, pelo capim, ainda ouviram a voz de sá
Domingas a gritar insultos, enquanto Xoxombo fugia para junto de
Carmindinha.
E
foi mesmo nesse dia, já tão cheio de confusão desde manhã, que
sucedeu o chumbo no mataco do Zeca Bunéu.
José Luandino Vieira, in Nosso Musseque
Nenhum comentário:
Postar um comentário