quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Zeca Bunéu e outros


II

Onde mordeu o marimbomdo, naquele dia de chuva, tem uma marca que não vai sair mais. É um pouco em cima do joelho e o Zeca mostra sempre. Mas a outra, aquela do chumbo do menino Nanito, filho do polícia, essa o Zeca esquiva. Desculpa que é preciso baixar os calções, mas a gente sabe: o rapaz não quer que lhe façam pouco. É verdade que chumbo no mataco não é muito de mostrar mas a culpa é dele, que gosta contar os casos. Não é bem como ele fala, que sucedeu: o Zeca, cadavez que conta, mete sempre as partes dele e, quando a gente vai ver, ninguém sabe mais onde está a verdade e onde está a mentira.

1.

Foi num dia que nasceu com azar.
Ainda não eram cinco horas, escuro mesmo, quando uma grande confusão começou lá no musseque. Os gritos vinham da cubata da Albertina mas ninguém que se levantou logo, os vizinhos já estavam acostumados. Cada homem que ela arranjava lhe dava porrada, era sempre o mesmo caso: depois de alguns meses de viverem lá em casa, comerem à custa da pobre, beberem à custa da pobre, uma carga de surra, maleta na mão e nunca mais ninguém lhes via. Só porque Albertina queria um filho, falava que estava se sentir muito sozinha e, sempre que pedia, tinha aquelas discussões e pancadas.
Nesse dia, quando a manhã acordou, o barulho era maior, diferente, os gritos se prolongaram em gemidos e a vizinhança começou dar mais importância, adiantou sair, aproximando-se, curiosos e preocupados, da cubata. Albertina andara segredando, sorridente, que já tinha mais de dois meses, conversando com sá Domingas e don’Ana, mães já antigas, mesmo com dona Branca, mãe do Zeca, que, no princípio, estava dizer mulher que dorme com todos não é para ter filhos. Esse segredo foi guardado nas vizinhas, só algumas meninas mais velhas sabiam e, por isso, naquela manhã todas se chegaram medrosas, pensando azar.
A coitada da Albertina lá estava, rebolando no chão do quarto, torcendo parecia era cobra mesmo gorda como era e o sangue descia nas pernas, sujava a combinação, o cimento. Don’Ana é que adiantou entrar, acendeu o candeeiro e nenhuma menina nem miúdo que deixaram ver também. Os mais-velhos não aceitaram, fecharam logo a porta. Só sentimos os gemidos, as vozes a falar baixo, esses assuntos a gente não percebia bem, barulho de porem a Albertina na cama dela e, mais tarde, nem mesmo deixaram nos espiar quando meteram a branca na carrinha dos bombeiros.
Essa confusão do princípio do dia falaram-lhe muito na hora do matabicho, antes dos homens partirem no serviço e os monas saírem para brincar. Depois, chamadas nos seus trabalhos de todos os dias, as mulheres calaram o assunto. Só que, lavando ou cozinhando, lamentavam a pobre da Albertina que queria um filho e acabava sempre com a confusão. As meninas Carmindinha e Tunica, batucando o fundo das latas, já tinham passado para buscar água e da casa de sá Domingas só vinha a cantiga da senhora batendo a roupa na selha, quando o Zeca Bunéu chegou para a brincadeira e deu encontro seus amigos conversando o assunto.
Não acreditas? Minha irmã viu mesmo. Toda nua, rebolar no chão. Parece é o batalhão lhe pisou com as botas na barriga!
E miúdo Xoxombo batia com o pé descalço para mostrar no Biquinho, ele não queria lhe acreditar. É verdade sô Américo era mesmo um tropa, mas um homem de verdade não pode fazer isso.
Te digo. Parece é ela já tinha o filho dele na barriga e ele não queria...
Ená! Mas estava toda nua? — perguntou, rindo os dentes todos, o Zito.
Sukuama! Sempre a pensar as coisas podres! Cala-te a boca, mas é!
Aí o Zeca aproveitou para entrar logo a dizer que só ele é que sabia, tinha visto mesmo a Albertina torcendo-se no chão e a cara dela branca, branca, parecia era papel, quando lhe meteram na carrinha dos bombeiros. Puxou seu jeito de contar, mas agora sério, falando que homem que pisa na mulher não é homem, mesmo se é mulher de todos, não tem diferença.
Sentados, chupando as gajajas madurinhas tiradas com as pedradas, deixavam o tempo correr assim, nada que lhes distraía naquela hora desse assunto da Albertina e do mistério que tinha essa doença dela, cada qual queria pôr sua opinião mas, no fim, tudo ficava na mesma: ninguém que sabia, não adiantava falar à toa.
Xoxombo! Xoxomboéé! Vem cá!...
Sá Domingas estava na porta, o quimone solto sobre as mamas grandes balançando, chamando, zangada. O menino levantou dum salto, deixou a fisga no Zito e saiu nas corridas. Zeca Bunéu, Zito e Biquinho ficaram a mirar, conheciam bem aquele chamamento, se calhar ia-lhe pôr jindungo, tinha ouvido mesmo o menino falar aquelas conversas da Albertina nua. Esse Xoxombo não tem cuidado, bem que se lhe avisa, mas nada. Agora pronto! Os gritos do miúdo, o barulho das pancadas, a voz zangada de sá Domingas chegaram debaixo do pau.
Aiuê, aiuê, mam’etuê! Nakuetuéé!
Seu mal-educado, já se viu! Toma!
Ouvia-se aquele barulho conhecido do pau de funji nas mãos, no mataco e o Xoxombo a berrar parecia era cabrito. Sá Domingas falava o castigo, batia zangada e sentia-se o filho a correr dentro da casa, tropeçando nas coisas. A voz dela a ralhar e o choro soluçado do Xoxombo puseram medo nos amigos. Mamã Domingas abriu a porta, ameaçou, deu berrida:
Mal-educados! E esse cangundo é o pior. Aposto é ele quem andou escrever essas coisas no Xoxombo. Ngueta sem educação!
Já se sabia! Tudo quanto aparecia de malandragem lá no nosso musseque era sempre o Zeca Bunéu. Pronto! Naquela manhã já não tinha mais o Xoxombo para brincar. E logo nesse dia que o Zeca trazia a caixa de fósforos com um quissonde grande só para lutar com o cafuca do Xoxombo. Azar!
Tristes, saíram pelo capim acima, experimentando a pontaria nas garrafas vazias e durante o resto da manhã se perderam pelos cajueiros e muxixes zunindo pedradas nos pássaros. Só onze horas, quando Carmindinha e Tunica passaram para baixo com as latas da água na cabeça, é que foram devagarinho até no quintal e chamaram o companheiro. Sentado numa pedra, soluçando ainda com a raiva dele, Xoxombo fazia desenhos no chão com um bocado de catandú. Sá Domingas estava lá dentro com as filhas para adiantar fazer almoço e aí aproveitaram para lhe chamar:
Xoxombo! Xoxomboéé!!
O menino levantou, cauteloso, veio devagarinho e encostou nas aduelas. Biquinho pediu:
Xoxombo, empresta ainda o teu cafuca para lutar no quissonde do Zeca.
Não empresto nada. Vão à merda!
Xoxombo, mas a gente te fez mal? Diz só, te fizemos mal?
Xoxombo abanou a cabeça para responder:
O sacana do Nanito m’aldrabou-me. Mas logo-logo rebento-lhe as fuças, vai ver! Juro sangue de Cristo!
Fez as cruzes do cuspo na mão, mas não emprestou o cafuca. Que não senhor, era um mestre, tinha-lhe custado a apanhar e quando ia sair, de tarde, queria pelejar no quissonde do Zeca e dar-lhe uma surra.
Mas Xoxombo, conta então. Nanito fez é o quê?
O menino pôs cara de mau e, sempre a soluçar, foi falando em voz baixa:
O Nanito estava comer abacate dele, depois me perguntou-me: “Xoxombo, queres um brinquedo?” Aí eu disse: “Sim.” Então o gajo pôs o caroço do abacate no bolso da minha bata e disse: “Eu desenho agora cá fora o brinquedo que tu queres e logo à noite tu encontras no bolso.”
Zeca Bunéu desatou a rir e o Xoxombo também queria rir mas os soluços atrapalhavam-lhe.
Xê, seu burro! Então não sabias abacate põe nódoa, não sai mais?
Esqueci, naquela hora. Rebento-lhe as fuças. O sacrista desenhou mesmo uma asneira!
E, olhando para dentro de casa, disse em voz baixa o nome do desenho. Uma gargalhada de todos saltou para dentro do quintal e entrou pela cubata, provocando. Na zuna, pelo capim, ainda ouviram a voz de sá Domingas a gritar insultos, enquanto Xoxombo fugia para junto de Carmindinha.
E foi mesmo nesse dia, já tão cheio de confusão desde manhã, que sucedeu o chumbo no mataco do Zeca Bunéu.

José Luandino Vieira, in Nosso Musseque

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