Meus
olhos são pequenos para ver
a
massa de silêncio concentrada
por
sobre a onda severa, piso oceânico
esperando
a passagem dos soldados.
Meus
olhos são pequenos para ver
luzir
na sombra a foice da invasão
e
os olhos no relógio, fascinados,
ou
as unhas brotando em dedos frios.
Meus
olhos são pequenos para ver
o
general com seu capote cinza
escolhendo
no mapa uma cidade
que
amanhã será pó e pus no arame.
Meus
olhos são pequenos para ver
a
bateria de rádio prevenindo
vultos
a rastejar na praia obscura
aonde
chegam pedaços de navios.
Meus
olhos são pequenos para ver
o
transporte de caixas de comida,
de
roupas, de remédios, de bandagens
para
um porto da Itália onde se morre.
Meus
olhos são pequenos para ver
o
corpo pegajento das mulheres
que
foram lindas, beijo cancelado
na
produção de tanques e granadas.
Meus
olhos são pequenos para ver
a
distância da casa na Alemanha
a
uma ponte na Rússia, onde retratos,
cartas,
dedos de pé boiam em sangue.
Meus
olhos são pequenos para ver
uma
casa sem fogo e sem janela,
sem
meninos em roda, sem talher,
sem
cadeira, lampião, catre, assoalho.
Meus
olhos são pequenos para ver
os
milhares de casas invisíveis
na
planície de neve onde se erguia
uma
cidade, o amor e uma canção.
Meus
olhos são pequenos para ver
as
fábricas tiradas do lugar,
levadas
para longe, num tapete,
funcionando
com fúria e com carinho.
Meus
olhos são pequenos para ver
na
blusa do aviador esse botão
que
balança no corpo, fita o espelho
e
se desfolhará no céu de outono.
Meus
olhos são pequenos para ver
o
deslizar do peixe sob as minas,
e
sua convivência silenciosa
com
os que afundam, corpos repartidos.
Meus
olhos são pequenos para ver
os
coqueiros rasgados e tombados
entre
latas, na areia, entre formigas
incompreensivas,
feias e vorazes.
Meus
olhos são pequenos para ver
a
fila de judeus de roupa negra,
de
barba negra, prontos a seguir
para
perto do muro — e o muro é branco.
Meus
olhos são pequenos para ver
essa
fila de carne em qualquer parte,
de
querosene, sal ou de esperança
que
fugiu dos mercados deste tempo.
Meus
olhos são pequenos para ver
a
gente do Pará e de Quebec
sem
notícia dos seus e perguntando
ao
sonho, aos passarinhos, às ciganas.
Meus
olhos são pequenos para ver
todos
os mortos, todos os feridos,
e
este sinal no queixo de uma velha
que
não pôde esperar a voz dos sinos.
Meus
olhos são pequenos para ver
países
mutilados como troncos,
proibidos
de viver, mas em que a vida
lateja
subterrânea e vingadora.
Meus
olhos são pequenos para ver
as
mãos que se hão de erguer, os gritos roucos,
os
rios desatados, e os poderes
ilimitados
mais que todo exército.
Meus
olhos são pequenos para ver
toda
essa força aguda e martelante,
a
rebentar do chão e das vidraças,
ou
do ar, das ruas cheias e dos becos.
Meus
olhos são pequenos para ver
tudo
que uma hora tem, quando madura,
tudo
que cabe em ti, na tua palma,
ó
povo! que no mundo te dispersas.
Meus
olhos são pequenos para ver
atrás
da guerra, atrás de outras derrotas,
essa
imagem calada, que se aviva,
que
ganha em cor, em forma e profusão.
Meus
olhos são pequenos para ver
tuas
sonhadas ruas, teus objetos,
e
uma ordem consentida (puro canto,
vai
pastoreando sonos e trabalhos).
Meus
olhos são pequenos para ver
essa
mensagem franca pelos mares,
entre
coisas outrora envilecidas
e
agora a todos, todas ofertadas.
Meus
olhos são pequenos para ver
o
mundo que se esvai em sujo e sangue,
outro
mundo que brota, qual nelumbo,
— mas
veem, pasmam, baixam deslumbrados.
Carlos Drummond de Andrade, in A Rosa do Povo
Nenhum comentário:
Postar um comentário