sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Capítulo 4 | Cuidado com o labirinto

Vem com força, beijando a ponta dos postes, a cabeça do beija-flor, a pelagem do cachorro, os fios de prata, energizando, fortalecendo, brilhando o alumínio jogado no chão, reluzindo nos sacos pretos cheios de coisas descartáveis, clareando as costas do menino, iluminando a pipa, brilhando o cerol, o sol vem com força.
Foi comprar pão, as moedas balançavam no bolso e isso o irritava, tentava pensar em outra coisa, talvez a última música que tinha ouvido.
Ao passar pela frente da casa, notou a calçada molhada e ouviu o barulho de água.
A vizinha que a alguns dias alimentava uma cadela agora estava lavando o quintal. Meias finas até o joelho, uns cinquenta anos de vida e um cabelo seco coberto por uma grossa touca de lã, feita por ela mesma.
Continuou a andar, agora na outra calçada, um barulho de vassoura, não de piaçava, mas dessas modernas, de material sintético, coloridas e mais duras.
O que seria aquilo? Parecia que todo mudo estava lavando a calçada.
Resolveu parar, voltou alguns passos e olhou para a vizinha, atrás dela dois cachorros presos, com tapetes por baixo das patas, para não molhar. Do outro lado, dois anões de jardim o olhavam como se estivessem zangados, ele não tinha coragem de olhar direto em seus olhos de gesso.
Olhei dentro dos olhos parados das estátuas de gesso daquele quintal arrumado e sem vida, a mulher continuava a lavar, lavava o que já estava limpo.
Passou a mão pelos bolsos, num deles uma colher, no outro certificou-se de que as chaves estavam lá, tocou em mais metais, moedas.
Enveredou pela esquina, foi pouco o esforço, avistou as fezes de algum cachorro, pensou em pisar, talvez até escorregar nela, seria legal, uma vez escorregou numa chapa de raios X, caiu e levantou rapidamente, a vergonha de alguém ter visto era pior do que o tombo em si, mas se divertiu, em casa não conseguia parar de rir, ainda mais quando olhou a chapa e viu duas costelas quebradas, pobre diabo.
Calixto não conseguia parar de andar, andar fazia com que não pensasse.
Parou em frente à padaria, olhou por alguns segundos e continuou a caminhar, o livro em sua mão agora pesava uns dois quilos.
A rua tinha uma subida, alguns matos cresciam vencendo o concreto, talvez até algum cocô de cachorro, no fundo um bom fertilizante, os tivesse nutrido, ou a urina de jovens que voltavam dos bailes a noite.
Algum jovem que urinou forte demais naquele dia, pois acabara de gozar nas pernas de uma menina que conheceu dentro do salão.
Morena, cabelos longos, pernas torneadas como a de um jogador de futebol, aulas de axé.
A porra corria pelos músculos, descendo rapidamente, onde encontraria nada mais do que o chão frio e minutos depois a morte dos espermatozoides, essas coisas acontecem pensou ele, talvez só com os outros, mas acontecem.
Já caminhava por mais de quarenta minutos quando chegou a uma rua conhecida.
Estava se aproximando do serviço, pensou em continuar andando, não queria que as coisas parassem de novo, mas as pernas doíam, as solas dos pés se faziam notar, afinal só percebemos certas coisas quando nos incomodam.
Não podia continuar por muito tempo. Foi quando viu aquele senhor, carregando a carroça cheia de papelão, parou em frente a ele e lhe deu o livro, o homem estranhou, mas logo em seguida agradeceu, Calixto continuou a caminhar, o homem jogou o livro na carroça, devia pesar pouco, mas, junto com o papelão, seria molhado e daria alguns centavos.
O portão chegou e quase bateu no seu peito, os vizinhos daquela velha casa o olhavam, sempre olharam e para sempre olhariam.
Sempre me senti invisível, talvez fosse meu superpoder, cada ano que ganhava eu era menos notado, e hoje ninguém nem sequer sabe que existo, essa é a impressão que tenho.
Mãos nos dois bolsos, tentando lembrar onde estava a maldita chave, achou, enfiou na fechadura e destrancou, deu o primeiro passo, o pensamento na ligação, na quantidade de créditos que ainda tinha naquele cartão, tinha que ligar, não podia deixar.
Entrou na casa, atirou as chaves na mesa, nela um livro, olhou a capa e, por mais que tivesse raiva, não conseguia largar o amor pela literatura daquele que menosprezava seu sentimento de amizade, no fim não devia ter se aproximado daquele autor, já fora advertido que as obras são o que há de melhor nos autores, quem lhe disse isso acertou.
Havia falado com o autor algumas vezes, em alguns momentos de angústia chegava a discar os primeiros números, mas logo desistia, tinha noção de que não era seu amigo, de que não era nada dele, e sempre lia mais algumas páginas para se acalmar. Quando se lembrava do assunto, lhe vinha o labirinto, sempre teve medo dessa palavra, as palavras na sua ideia das coisas são perigosas, ainda mais uma que não demonstrasse saída, labirinto, era algo que realmente temia.
Uma vez se pegou olhando para o espelho, encarando seus próprios olhos, notando seu próprio semblante, por uns segundos se perdeu, teve medo quando recobrou os sentidos, viu o perigo de quase ultrapassar o portal, acreditava nisso, no portal para o outro lado, e sabia de muitos que dessa entrada não voltaram.
Quando olho para o espelho, sempre termino me perguntando, quem é esse cara afinal?
Sinto saudade da minha filha, de ver ela todas as manhãs, acordar e ir ver ela dormindo, quando acordava punha fogo na casa, correria pra lá e pra cá, não mexe nisso, não pode pegar isso aí, suas perguntas me davam um sentimento de ser útil para alguém, de saber algo e poder compartilhar.
Filhos criados longe dos pais são frios.
Ali era seu trabalho, nada de muito complexo, procurar holerites, cada caixa tinha uma inicial, se fosse r, cheia de Raimundos, Ronaldos, Robertos, se fosse um c, Carolinas, Cecílias, Carlas, Cristinas.
De vez em quando alguém pedia algo mais, uma ficha de pagamento, um fundo de garantia, tudo pelo nome, tudo organizado.
Todos os dias a mesma coisa, de manha um café SL na vendinha e no início da tarde um almoço PF acompanhado de um refrigerante CC.
Calixto, desde que entrou naquele arquivo, que mais parecia um depósito de lixo no começo, fez questão de organizar tudo. Cada caixa tinha um número, a pasta indicava o que tinha dentro da caixa, e cada sala abrigava um certo tipo de documento. Uma só para holerites e fundos de garantia, outra só para notas fiscais enviadas e recebidas, e a última, que ficava no fundo da casa, continha documentos diversos, papéis como contas de água, luz e aluguel.
Esse dia era especial, chegaria alguém não programado, alguém que lhe ajudaria, estava desconfiado, é verdade. Afinal por que colocar outro cara com ele, para um serviço de que dava conta? Mas outros pensamentos lhe vinham, e eram mais convincentes do que uma substituição.
Foi ao banheiro, passou água nos pequenos fios atrás da nuca, lavou o rosto, para tirar um pouco do brilho, e secou com papel higiênico. Foi para a frente da casa, abriu a porta e sentou calmamente na cadeira, à beira da mesa que ficava de frente para a porta, se passasse alguém naquele momento e visse a cena, com certeza acharia estranho, no mínimo mórbido, mas ninguém o veria, essa era a verdade, o muro tinha um metro e vinte de altura, mas eram as grades que completavam a invisibilidade de quem estava dentro da residência.
Alguém chegou, olhou os dois pés de rosa que insistiam em crescer no quintal, também notou os matos já altos e algumas pedras que, com certeza, foram usadas por alguém há muito tempo para fazer um jardim, sem conseguir êxito.
Bateu uma mão na outra e Calixto escutou as palmas, levantou como se fosse um diretor de multinacional num momento muito importante, conferiu o zíper da calça jeans para ver se estava fechado, bateu as mãos por cima do bolso para conferir o relevo das chaves e sentiu no outro a colher novamente, por último colocou a mão para trás e bateu na carteira, que trazia alguns trocados, velhas fotos e anotações.
Finalmente chegou à porta e perguntou primeiro quem era.
Sou o Hamilton, foi o departamento pessoal da Robson Canto que me mandou.
Entrou. Um jovem moreno, cabelos enrolados, com excesso de gel, calça de sarja, camisa colada no corpo com os mamilos salientes, magro e muito curioso.
Então é aqui que está o nosso arquivo? Legal cara, eu sou o novo funcionário.
Calixto não queria pegar na mão do rapaz, mas isso fora inventado muito antes, era uma forma de mostrar que não se estava armado, e não se podia fugir disso, ele odiava, mas sabia.
Seja bem-vindo.
Obrigado, você que é o Calixto, o encarregado daqui?
Sou sim, o patrão de todo esse império.
O jovem entrou, viu os fios do telefone presos a pequenos pregos, viu o carpete desbotado, as paredes deterioradas, marcadas pelo tempo que age igual com as pessoas, transformando-as em caricaturas de si mesmas, leves lembranças do brilho que um dia tiveram.
Está estranhando a casa? Bom, ela é velha, assim como o salário é defasado, mas em compensação o trabalho aqui é simples, vou te passar tudo aos poucos, mas não tem segredo, você já trabalhou com arquivo?
Não. Na verdade trabalhei com vendas em farmácia, e em lojas de roupa no fim do ano.
Bom, creio que essa experiência não vai servir, mas te passo tudo e você não vai ter dificuldade, cada caixa ali tem uma letra do nosso alfabeto, cada letra significa a inicial de um nome, então se formos procurar os documentos do senhor Antônio por exemplo, você vai na caixa do A, retira o Antônio do mês de janeiro, depois vai na caixa do mês de fevereiro e assim por diante.
E aquelas caixas ali?
Bom, essas são numeradas, existem duzentos e sessenta e cinco caixas, todas estão nesse controle, através dele você acha a relação do que precisa, eu classifiquei por cor, cada sobrenome a mais tem uma cor, mas isso você pega também, o mais difícil são as fichas de empregados, que ficam arquivados na outra sala, te passo depois que você aprender essa sala aqui.
É sempre assim tranquilo? Ou tem uns momentos de correria?
Bom, na maioria das vezes é calmo, mas como trabalhamos para uma empresa de terceirização, às vezes eles mandam um setor todo embora, e aí você imagina, um deles resolve pôr a empresa no pau e convence os outros, acaba um sendo testemunha do outro e entram com ação coletiva, aí é osso, tem que pegar documento de todo mundo, então imagina quinze ou vinte pastas de uma vez, e puxar todos os anos desses caras, mês a mês, então deve ser por isso que eles te mandaram aqui, devem ter perdido algum contrato e aí já viu, demissão em massa.
Nossa, eu não imaginava.
Esse ramo aqui tem suas particularidades, saber a história da demissão do funcionário é bem bacana, a gente pode ligar no RH e perguntar, sempre eles falam e a gente se diverte.
Mas como ver alguém perder o emprego pode ser engraçado?
Ah, a gente tem que ser neutro, veja por exemplo o caso da semana passada, do vigilante que pedia o crachá de identificação para a faxineira toda vez que ela tinha que passar por ele, ela começou a se irritar, e ele continuava a pedir o crachá, disse que aquilo era perseguição, mas o segurança continuava a pedir sempre o crachá, trinta vezes por dia se ela passasse por ali, numa discussão ela lhe prometeu vingança, um belo dia ele foi pegar seu uniforme no armário e estava todo picotado, não deu outra, ele foi até ela no meio do hospital e deu duas coronhadas na cabeça dela, então é justa causa pra ele, e a gente tem que separar tudo, tô com a foto dele aqui na minha mesa.
Nossa! Pensei mesmo que fosse só papel.
Tem sempre gente atrás do papel, meu jovem, se soubessem disso não havia morrido tanta gente no Holocausto, veja a foto do animal.
Cara de bravo.
Bravo com empregada, deve ser um cabra muito triste pra perder a vida assim.
Senhor Calixto, ele foi indiciado?
Senhor não, por favor só Calixto, e não, ele não foi indiciado, mas perdeu o trampo.
Calixto, e o Doutor Robson vem aqui?
Muito difícil, no começo ele até vinha, mas, depois que abriu várias filiais, não tem tempo pra nada.
Hamilton viu um crucifixo na parede e perguntou se Calixto era católico.
Calixto olhou para ele e não disse nada.

Ferréz, in Deus foi almoçar

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