Vem
com força, beijando a ponta dos postes, a cabeça do beija-flor, a
pelagem do cachorro, os fios de prata, energizando, fortalecendo,
brilhando o alumínio jogado no chão, reluzindo nos sacos pretos
cheios de coisas descartáveis, clareando as costas do menino,
iluminando a pipa, brilhando o cerol, o sol vem com força.
Foi
comprar pão, as moedas balançavam no bolso e isso o irritava,
tentava pensar em outra coisa, talvez a última música que tinha
ouvido.
Ao
passar pela frente da casa, notou a calçada molhada e ouviu o
barulho de água.
A
vizinha que a alguns dias alimentava uma cadela agora estava lavando
o quintal. Meias finas até o joelho, uns cinquenta anos de vida e um
cabelo seco coberto por uma grossa touca de lã, feita por ela mesma.
Continuou
a andar, agora na outra calçada, um barulho de vassoura, não de
piaçava, mas dessas modernas, de material sintético, coloridas e
mais duras.
O
que seria aquilo? Parecia que todo mudo estava lavando a calçada.
Resolveu
parar, voltou alguns passos e olhou para a vizinha, atrás dela dois
cachorros presos, com tapetes por baixo das patas, para não molhar.
Do outro lado, dois anões de jardim o olhavam como se estivessem
zangados, ele não tinha coragem de olhar direto em seus olhos de
gesso.
Olhei
dentro dos olhos parados das estátuas de gesso daquele quintal
arrumado e sem vida, a mulher continuava a lavar, lavava o que já
estava limpo.
Passou
a mão pelos bolsos, num deles uma colher, no outro certificou-se de
que as chaves estavam lá, tocou em mais metais, moedas.
Enveredou
pela esquina, foi pouco o esforço, avistou as fezes de algum
cachorro, pensou em pisar, talvez até escorregar nela, seria legal,
uma vez escorregou numa chapa de raios X, caiu e levantou
rapidamente, a vergonha de alguém ter visto era pior do que o tombo
em si, mas se divertiu, em casa não conseguia parar de rir, ainda
mais quando olhou a chapa e viu duas costelas quebradas, pobre diabo.
Calixto
não conseguia parar de andar, andar fazia com que não pensasse.
Parou
em frente à padaria, olhou por alguns segundos e continuou a
caminhar, o livro em sua mão agora pesava uns dois quilos.
A
rua tinha uma subida, alguns matos cresciam vencendo o concreto,
talvez até algum cocô de cachorro, no fundo um bom fertilizante, os
tivesse nutrido, ou a urina de jovens que voltavam dos bailes a
noite.
Algum
jovem que urinou forte demais naquele dia, pois acabara de gozar nas
pernas de uma menina que conheceu dentro do salão.
Morena,
cabelos longos, pernas torneadas como a de um jogador de futebol,
aulas de axé.
A
porra corria pelos músculos, descendo rapidamente, onde encontraria
nada mais do que o chão frio e minutos depois a morte dos
espermatozoides, essas coisas acontecem pensou ele, talvez só com os
outros, mas acontecem.
Já
caminhava por mais de quarenta minutos quando chegou a uma rua
conhecida.
Estava
se aproximando do serviço, pensou em continuar andando, não queria
que as coisas parassem de novo, mas as pernas doíam, as solas dos
pés se faziam notar, afinal só percebemos certas coisas quando nos
incomodam.
Não
podia continuar por muito tempo. Foi quando viu aquele senhor,
carregando a carroça cheia de papelão, parou em frente a ele e lhe
deu o livro, o homem estranhou, mas logo em seguida agradeceu,
Calixto continuou a caminhar, o homem jogou o livro na carroça,
devia pesar pouco, mas, junto com o papelão, seria molhado e daria
alguns centavos.
O
portão chegou e quase bateu no seu peito, os vizinhos daquela velha
casa o olhavam, sempre olharam e para sempre olhariam.
Sempre
me senti invisível, talvez fosse meu superpoder, cada ano que
ganhava eu era menos notado, e hoje ninguém nem sequer sabe que
existo, essa é a impressão que tenho.
Mãos
nos dois bolsos, tentando lembrar onde estava a maldita chave, achou,
enfiou na fechadura e destrancou, deu o primeiro passo, o pensamento
na ligação, na quantidade de créditos que ainda tinha naquele
cartão, tinha que ligar, não podia deixar.
Entrou
na casa, atirou as chaves na mesa, nela um livro, olhou a capa e, por
mais que tivesse raiva, não conseguia largar o amor pela literatura
daquele que menosprezava seu sentimento de amizade, no fim não devia
ter se aproximado daquele autor, já fora advertido que as obras são
o que há de melhor nos autores, quem lhe disse isso acertou.
Havia
falado com o autor algumas vezes, em alguns momentos de angústia
chegava a discar os primeiros números, mas logo desistia, tinha
noção de que não era seu amigo, de que não era nada dele, e
sempre lia mais algumas páginas para se acalmar. Quando se lembrava
do assunto, lhe vinha o labirinto, sempre teve medo dessa palavra, as
palavras na sua ideia das coisas são perigosas, ainda mais uma que
não demonstrasse saída, labirinto, era algo que realmente temia.
Uma
vez se pegou olhando para o espelho, encarando seus próprios olhos,
notando seu próprio semblante, por uns segundos se perdeu, teve medo
quando recobrou os sentidos, viu o perigo de quase ultrapassar o
portal, acreditava nisso, no portal para o outro lado, e sabia de
muitos que dessa entrada não voltaram.
Quando
olho para o espelho, sempre termino me perguntando, quem é esse cara
afinal?
Sinto
saudade da minha filha, de ver ela todas as manhãs, acordar e ir ver
ela dormindo, quando acordava punha fogo na casa, correria pra lá e
pra cá, não mexe nisso, não pode pegar isso aí, suas perguntas me
davam um sentimento de ser útil para alguém, de saber algo e poder
compartilhar.
Filhos
criados longe dos pais são frios.
Ali
era seu trabalho, nada de muito complexo, procurar holerites, cada
caixa tinha uma inicial, se fosse r, cheia de Raimundos, Ronaldos,
Robertos, se fosse um c, Carolinas, Cecílias, Carlas, Cristinas.
De
vez em quando alguém pedia algo mais, uma ficha de pagamento, um
fundo de garantia, tudo pelo nome, tudo organizado.
Todos
os dias a mesma coisa, de manha um café SL na vendinha e no início
da tarde um almoço PF acompanhado de um refrigerante CC.
Calixto,
desde que entrou naquele arquivo, que mais parecia um depósito de
lixo no começo, fez questão de organizar tudo. Cada caixa tinha um
número, a pasta indicava o que tinha dentro da caixa, e cada sala
abrigava um certo tipo de documento. Uma só para holerites e fundos
de garantia, outra só para notas fiscais enviadas e recebidas, e a
última, que ficava no fundo da casa, continha documentos diversos,
papéis como contas de água, luz e aluguel.
Esse
dia era especial, chegaria alguém não programado, alguém que lhe
ajudaria, estava desconfiado, é verdade. Afinal por que colocar
outro cara com ele, para um serviço de que dava conta? Mas outros
pensamentos lhe vinham, e eram mais convincentes do que uma
substituição.
Foi
ao banheiro, passou água nos pequenos fios atrás da nuca, lavou o
rosto, para tirar um pouco do brilho, e secou com papel higiênico.
Foi para a frente da casa, abriu a porta e sentou calmamente na
cadeira, à beira da mesa que ficava de frente para a porta, se
passasse alguém naquele momento e visse a cena, com certeza acharia
estranho, no mínimo mórbido, mas ninguém o veria, essa era a
verdade, o muro tinha um metro e vinte de altura, mas eram as grades
que completavam a invisibilidade de quem estava dentro da residência.
Alguém
chegou, olhou os dois pés de rosa que insistiam em crescer no
quintal, também notou os matos já altos e algumas pedras que, com
certeza, foram usadas por alguém há muito tempo para fazer um
jardim, sem conseguir êxito.
Bateu
uma mão na outra e Calixto escutou as palmas, levantou como se fosse
um diretor de multinacional num momento muito importante, conferiu o
zíper da calça jeans para ver se estava fechado, bateu as mãos por
cima do bolso para conferir o relevo das chaves e sentiu no outro a
colher novamente, por último colocou a mão para trás e bateu na
carteira, que trazia alguns trocados, velhas fotos e anotações.
Finalmente
chegou à porta e perguntou primeiro quem era.
Sou
o Hamilton, foi o departamento pessoal da Robson Canto que me mandou.
Entrou.
Um jovem moreno, cabelos enrolados, com excesso de gel, calça de
sarja, camisa colada no corpo com os mamilos salientes, magro e muito
curioso.
Então
é aqui que está o nosso arquivo? Legal cara, eu sou o novo
funcionário.
Calixto
não queria pegar na mão do rapaz, mas isso fora inventado muito
antes, era uma forma de mostrar que não se estava armado, e não se
podia fugir disso, ele odiava, mas sabia.
Seja
bem-vindo.
Obrigado,
você que é o Calixto, o encarregado daqui?
Sou
sim, o patrão de todo esse império.
O
jovem entrou, viu os fios do telefone presos a pequenos pregos, viu o
carpete desbotado, as paredes deterioradas, marcadas pelo tempo que
age igual com as pessoas, transformando-as em caricaturas de si
mesmas, leves lembranças do brilho que um dia tiveram.
Está
estranhando a casa? Bom, ela é velha, assim como o salário é
defasado, mas em compensação o trabalho aqui é simples, vou te
passar tudo aos poucos, mas não tem segredo, você já trabalhou com
arquivo?
Não.
Na verdade trabalhei com vendas em farmácia, e em lojas de roupa no
fim do ano.
Bom,
creio que essa experiência não vai servir, mas te passo tudo e você
não vai ter dificuldade, cada caixa ali tem uma letra do nosso
alfabeto, cada letra significa a inicial de um nome, então se formos
procurar os documentos do senhor Antônio por exemplo, você vai na
caixa do A, retira o Antônio do mês de janeiro, depois vai na caixa
do mês de fevereiro e assim por diante.
E
aquelas caixas ali?
Bom,
essas são numeradas, existem duzentos e sessenta e cinco caixas,
todas estão nesse controle, através dele você acha a relação do
que precisa, eu classifiquei por cor, cada sobrenome a mais tem uma
cor, mas isso você pega também, o mais difícil são as fichas de
empregados, que ficam arquivados na outra sala, te passo depois que
você aprender essa sala aqui.
É
sempre assim tranquilo? Ou tem uns momentos de correria?
Bom,
na maioria das vezes é calmo, mas como trabalhamos para uma empresa
de terceirização, às vezes eles mandam um setor todo embora, e aí
você imagina, um deles resolve pôr a empresa no pau e convence os
outros, acaba um sendo testemunha do outro e entram com ação
coletiva, aí é osso, tem que pegar documento de todo mundo, então
imagina quinze ou vinte pastas de uma vez, e puxar todos os anos
desses caras, mês a mês, então deve ser por isso que eles te
mandaram aqui, devem ter perdido algum contrato e aí já viu,
demissão em massa.
Nossa,
eu não imaginava.
Esse
ramo aqui tem suas particularidades, saber a história da demissão
do funcionário é bem bacana, a gente pode ligar no RH e perguntar,
sempre eles falam e a gente se diverte.
Mas
como ver alguém perder o emprego pode ser engraçado?
Ah,
a gente tem que ser neutro, veja por exemplo o caso da semana
passada, do vigilante que pedia o crachá de identificação para a
faxineira toda vez que ela tinha que passar por ele, ela começou a
se irritar, e ele continuava a pedir o crachá, disse que aquilo era
perseguição, mas o segurança continuava a pedir sempre o crachá,
trinta vezes por dia se ela passasse por ali, numa discussão ela lhe
prometeu vingança, um belo dia ele foi pegar seu uniforme no armário
e estava todo picotado, não deu outra, ele foi até ela no meio do
hospital e deu duas coronhadas na cabeça dela, então é justa causa
pra ele, e a gente tem que separar tudo, tô com a foto dele aqui na
minha mesa.
Nossa!
Pensei mesmo que fosse só papel.
Tem
sempre gente atrás do papel, meu jovem, se soubessem disso não
havia morrido tanta gente no Holocausto, veja a foto do animal.
Cara
de bravo.
Bravo
com empregada, deve ser um cabra muito triste pra perder a vida
assim.
Senhor
Calixto, ele foi indiciado?
Senhor
não, por favor só Calixto, e não, ele não foi indiciado, mas
perdeu o trampo.
Calixto,
e o Doutor Robson vem aqui?
Muito
difícil, no começo ele até vinha, mas, depois que abriu várias
filiais, não tem tempo pra nada.
Hamilton
viu um crucifixo na parede e perguntou se Calixto era católico.
Calixto
olhou para ele e não disse nada.
Ferréz, in Deus foi almoçar
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