quarta-feira, 5 de outubro de 2022

A Vida no Céu | Décimo quarto capítulo

(Luz: o que fica dos sonhos depois que nos atravessam.)

Sobrevoamos o Pico da Neblina. Era como um milagre furando o nevoeiro. Uma das vertentes erguia-se lisa, quase a pique. A outra, mais suave, estava coberta de verde. Árvores (árvores autênticas) galgavam por essa encosta, quase até ao cume. Nuvens de aves de variadas cores esvoaçavam, piavam, rodopiavam, por entre as densas copas. Um falcão planava, soberano e apático, com as asas refulgindo ao sol. Até nós, trazida pela brisa incandescente, chegava a respiração harmoniosa daquele mundo novo. Fui acordar Patrick.
Sonhei com a terra. Estava de volta à terra – disse-me, sorrindo. – Era um sonho tão intenso que, inclusive, voltei a experimentar o cheiro da terra molhada. Aliás, ainda sinto esse cheiro.
Levei-o até ao convés:
Consegues escutar?
Patrick soltou uma bela e limpa gargalhada:
Claro, amigo. Ouço as árvores confabulando lá em baixo. Agora já acreditas na Ilha Verde?
Ouvindo-o rir pensei no povo de nefelibatas que o chinês Han-Li afirma ter visitado. Acho o riso a mais bela e universal das linguagens. Uma gargalhada iluminada parece-me, inclusive, mais bonita do que qualquer melodia.
E agora?
Agora procuramos um lugar para descer.
Prendemos as balsas umas às outras. Sibongile e Mang juntaram-se a nós, ambos muito nervosos. A sul-africana mal conseguia falar. Patrick, pelo contrário, mantinha um notável sangue-frio:
Temos de ter algum cuidado ao descer. Não sabemos o que nos aguarda lá em baixo.
Como assim?!
Boniface e os tipos que desceram com ele podem estar escondidos, algures, na floresta, e têm armas de fogo.
O que sugeres? – perguntei.
Dois de nós descem até às rochas, ali, mesmo no topo do morro, onde não há árvores. Os outros ficam à espera.
E quem desce?
Sibongile ergueu a mão:
Eu e Mang...
Patrick abanou a cabeça:
Não me parece uma boa ideia. Vocês estão excessivamente nervosos. Além disso já não são jovens. Terão grandes dificuldades para resistir ao calor.
Isso é verdade – concordou Mang. – Quando estive na ilha, há vinte e tal anos, ainda tinha bons pulmões e um coração forte, mas mesmo assim o maldito calor derrubou-me em poucas horas. Sem o auxílio de... Sem o auxílio nem sei de quem, teria morrido.
Vou eu e o Carlos – declarou Aimée. – Cuido bem dele.
Patrick ajudou-nos a preparar uma mochila, insistindo para que levássemos água em abundância. A desidratação, segundo ele, podia ser ainda mais perigosa do que os piratas. Descemos. Eu primeiro, Aimée logo atrás. Assaltou-me, ao pisar terra, uma inquietante sensação de solidez. Assustou-me aquela obstinada matéria sob os meus pés. Porém, só compreendi isso mais tarde, bastante mais tarde, ao conversar com Aimée. Nós, os filhos do céu, vivemos a vida inteira, o tempo todo, sujeitos ao suave balanço das balsas e das redes. Os grandes dirigíveis, como o Paris, são muitíssimo mais estáveis, mas, mesmo neles, se sente uma vaga ondulação. Curiosamente, nem os meus pais nem ninguém me preparara para aquilo. Os cheiros, sim, estávamos à espera de um alvoroço de aromas inéditos, e, quanto a isso, a terra não nos desapontou. Sentámo-nos por um bom tempo nas rochas, a contemplar a floresta, tentando habituar-nos a ela e ganhar coragem para entrar. O nevoeiro parecia agarrar-se aos ramos das árvores.
Custa mais do que mergulhar no mar – murmurou Aimée. – Tenho medo.
O suor corria-me pelo rosto. Ardiam-me os olhos e sentia o coração aos saltos. Bebi um pouco de água e levantei-me. Parecia-me agora que também as rochas balançavam. Balançavam mais do que a Maianga. Estendi a mão para Aimée, mas ela recusou a ajuda. Ergueu-se, decidida, de um ímpeto, ao mesmo tempo que tirava a pistola do cinto:
Pelo sim, pelo não...
Não gosto de armas. Vê-la apontar a pistola para a floresta, longe de me tranquilizar, deixou-me ainda mais aflito. Sabia, contudo, que era inútil pedir-lhe para a guardar. Portanto, calei-me e segui-a. Abrimos caminho por entre o capim alto. Acariciei as folhas reluzentes, muito verdes, molhadas pelo vapor. Afundámos os pés na terra húmida.
Eles tinham razão – soprou Aimée. – Estes cheiros todos revigoram-me. Apesar do calor, nunca me senti tão viva.
Concordei. A floresta irradiava uma força regeneradora. A luz, lá dentro, coada pelas ramagens densas, ganhava um sem-fim de tonalidades verdes. Insetos minúsculos corriam pelos troncos. Uma rã saltou, assustada, debaixo dos meus pés. Continuámos a descer. Aimée escorregou na lama, largando a pistola, e foi a deslizar até bater na raiz de uma mafumeira. Eu sabia que era uma mafumeira (Ceiba pentandra), a que os brasileiros chamam sumaumeira, porque, em criança, costumava folhear, na companhia do meu pai, guias de árvores e de pássaros. Júlio sabia o nome de todas as árvores, o nome científico e os diversos nomes por que eram conhecidas, em português e inglês. Ele mostrava-me as suas árvores preferidas: as mafumeiras, mulembas, acácias-rubras, goiabeiras, abacateiros e imbondeiros. A grande paixão de Júlio são as palmeiras, embora neste caso já não estejamos a falar de árvores. Palmeiras não são árvores. Pertencem à única família botânica da ordem Arecales, que inclui os coqueiros e as tamareiras. A mafumeira, originária da América do Sul e Central, era um símbolo sagrado da mitologia maia. Já os índios ticuna, da Amazónia, imaginavam uma sumaumeira na origem do mundo. Uma das suas lendas assegura que, no início dos tempos, só existia escuridão na terra, uma noite fria e eterna, resultado da sombra impenetrável de uma gigantesca sumaumeira. Então, algures no tempo indefinido dessa inesgotável noite, a sumaumeira tombou com estrondo, abrindo um rasgão no céu e deixando entrar a luz. Ao cair, a árvore transformou-se num rio – o grande rio Amazonas. A água e a luz deram origem aos peixes, aos pássaros, às onças, aos homens e a toda a vida conhecida e por conhecer. Os índios também chamam à sumaumeira “a escada do céu”, dada a altura que consegue alcançar. Alguns exemplares chegavam a ultrapassar os setenta metros. A que se encontrava diante de nós era ainda jovem. Tinha todo o futuro para crescer. Antes do Dilúvio, a floresta fechada, com árvores de grande porte, como as sumaumeiras, não prosperava além dos mil metros. No cume do Pico da Neblina só existia, na época, capim e magros arbustos.
Aimée ergueu-se às gargalhadas, sacudindo a lama das calças. Abraçou-se ao tronco da mafumeira:
Obrigada, árvore.
Juntei-me a ela. Ficámos ali em silêncio, escutando os minúsculos e misteriosos sons da vida à nossa volta. Na terra, sentia-me analfabeto. No céu, eu sabia ler as nuvens e, embora não tivesse o ouvido tão educado quanto o de Patrick, aprendera a distinguir as diferentes vozes do vento. Ao fim de algum tempo, em silêncio, comecei a escutar o que me pareceu um assobio.
Ouves isto? – perguntei a Aimée. – Que pássaro assobia assim?
Os Beatles?! Queres saber que pássaro assobia o “Yesterday”, dos Beatles?!
Aimée tinha razão. Alguém (ou alguma coisa) vinha subindo, na nossa direção, assobiando o “Yesterday”. Lembrei-me do que me contara o meu pai sobre a origem da famosa canção dos Beatles. Paul McCartney acordou numa manhã de maio, em 1965, com uma resplandecente melodia na cabeça. A melodia soava-lhe tão óbvia, tão natural, que Paul acreditou tê-la escutado algures – provavelmente, mais do que uma vez. Passou os dias seguintes a assobiá-la para os amigos, à espera de que algum se recordasse dela e lhe indicasse o nome do compositor. Escutando-a ali, sob a verde penumbra de uma floresta secreta, não me espantou que tivesse emergido de um sonho.
Foi então que vimos surgir o assobiador. Levei alguns segundos a reconhecê-lo, tão magro e desvalido estava, em tronco nu e descalço, as calças em farrapos.
É o Boniface?! – soprou Aimée ao meu ouvido. – É ele, não é?
Passou por nós sem nos ver, ou como se não nos visse. Debruçou-se e apanhou a pistola que Aimée deixara cair. Rodou-a entre as mãos, cheirou-a, bateu com ela contra as raízes da mafumeira. A seguir, como se só então lhe ocorresse a serventia do objeto, segurou-a firmemente, na posição correta, e apontou-a na nossa direção. Riu-se. As suas gargalhadas estalavam na penumbra verde da floresta. Ergui os braços:
Calma! Calma! Baixe a arma...
Boniface fixou em nós uns olhos assombrados:
O meu silêncio era mais belo do que o deles – sussurrou. – Mas talvez não fosse suficientemente belo.
Ergueu o braço e lançou a pistola para longe. A arma desapareceu entre as ramagens. Não a escutei cair. O pirata sentou-se nas raízes da mafumeira, tapou o rosto com as mãos e começou a chorar. Os soluços sacudiam-lhe o peito magro:
A vida inteira só a amei a ela. Maldita feiticeira…
Aimée voltou-se para mim, os olhos muito abertos, muda de espanto. Não soube o que retorquir. Peguei-lhe na mão direita e arranquei-a dali. Só parei quando deixei de ouvir os soluços de Boniface.
O tipo está mesmo doido...
Nom de Dieu! Toda a gente diz o mesmo. Desde que ouvi pela primeira vez falar nele, alguém repete isso. Está louco, está louco, mas está louco porquê?
Bem, a mim parece-me louco. Louco como um louco.
A mim, parece-me apaixonado.
Apaixonado?
Não compreendes? Ele está apaixonado pela Sibongile. Está apaixonado por ela há muitos anos.
Como sabes?
Porque sou mulher.
Seja como for, a questão é outra...
Como é que ele está vivo?
Exato. Como é que ao fim destes dias todos o velho ainda está vivo. O calor devia tê-lo matado.
Tens razão. E se ele está vivo e a passear-se pela floresta, então os amigos dele podem também andar por aqui. Acho melhor regressarmos.
Concordei. Começámos a galgar a encosta, agarrando-nos aos troncos e às raízes, e tentando não escorregar na lama. Finalmente, exaustos, sujos e suados, alcançámos de novo as rochas nuas. Um rapaz estava sentado no último penedo, olhando para o alto. Lá em cima, contudo, só havia nuvens. Uma névoa triste e idêntica, que cobria todo o horizonte. Aimée agarrou-me a mão com força.
Mais surpresas?
Sacudi a cabeça, incrédulo. O facto de não vermos as balsas talvez fosse uma má surpresa. A outra era excelente. Soltei a mão de Aimée e corri:
Luan!
Luan ergueu-se de um salto. Abriu os braços para me receber:
Carlos! O teu pai disse-nos que virias. Fizeram-se apostas. Ele sempre achou que tu conseguirias encontrar o caminho para a ilha.
Abraçámo-nos. Aimée aproximou-se, intrigada:
Podes explicar-me o que está a acontecer?
Puxei-a para nós:
Este é o Luan. O meu primo.
Certo, e o que faz ele aqui? E onde estão as nossas balsas?
Calma – pediu Luan. – Uma pergunta de cada vez. A Maianga deve estar flutuando acima do nevoeiro. Estava lá no céu quando cheguei. É uma bela balsa. O tio Júlio estava inspirado quando a desenhou. Mas vocês parecem cansados. Este calor mata, não?
Tu, pelo contrário, não pareces nada cansado – retorqui, pasmado. – Tens a pele fresca, como quem acabou de sair de uma sala com ar condicionado.
Luan riu-se do meu espanto:
É uma longa história. Querem ouvir?

José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu

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