(Luz:
o que fica dos sonhos depois que nos atravessam.)
Sobrevoamos
o Pico da Neblina. Era como um milagre furando o nevoeiro. Uma das
vertentes erguia-se lisa, quase a pique. A outra, mais suave, estava
coberta de verde. Árvores (árvores autênticas) galgavam por essa
encosta, quase até ao cume. Nuvens de aves de variadas cores
esvoaçavam, piavam, rodopiavam, por entre as densas copas. Um falcão
planava, soberano e apático, com as asas refulgindo ao sol. Até
nós, trazida pela brisa incandescente, chegava a respiração
harmoniosa daquele mundo novo. Fui acordar Patrick.
– Sonhei
com a terra. Estava de volta à terra – disse-me, sorrindo. – Era
um sonho tão intenso que, inclusive, voltei a experimentar o cheiro
da terra molhada. Aliás, ainda sinto esse cheiro.
Levei-o
até ao convés:
– Consegues
escutar?
Patrick
soltou uma bela e limpa gargalhada:
– Claro,
amigo. Ouço as árvores confabulando lá em baixo. Agora já
acreditas na Ilha Verde?
Ouvindo-o
rir pensei no povo de nefelibatas que o chinês Han-Li afirma ter
visitado. Acho o riso a mais bela e universal das linguagens. Uma
gargalhada iluminada parece-me, inclusive, mais bonita do que
qualquer melodia.
– E
agora?
– Agora
procuramos um lugar para descer.
Prendemos
as balsas umas às outras. Sibongile e Mang juntaram-se a nós, ambos
muito nervosos. A sul-africana mal conseguia falar. Patrick, pelo
contrário, mantinha um notável sangue-frio:
– Temos
de ter algum cuidado ao descer. Não sabemos o que nos aguarda lá em
baixo.
– Como
assim?!
– Boniface
e os tipos que desceram com ele podem estar escondidos, algures, na
floresta, e têm armas de fogo.
– O
que sugeres? – perguntei.
– Dois
de nós descem até às rochas, ali, mesmo no topo do morro, onde não
há árvores. Os outros ficam à espera.
– E
quem desce?
Sibongile
ergueu a mão:
– Eu
e Mang...
Patrick
abanou a cabeça:
– Não
me parece uma boa ideia. Vocês estão excessivamente nervosos. Além
disso já não são jovens. Terão grandes dificuldades para resistir
ao calor.
– Isso
é verdade – concordou Mang. – Quando estive na ilha, há vinte e
tal anos, ainda tinha bons pulmões e um coração forte, mas mesmo
assim o maldito calor derrubou-me em poucas horas. Sem o auxílio
de... Sem o auxílio nem sei de quem, teria morrido.
– Vou
eu e o Carlos – declarou Aimée. – Cuido bem dele.
Patrick
ajudou-nos a preparar uma mochila, insistindo para que levássemos
água em abundância. A desidratação, segundo ele, podia ser ainda
mais perigosa do que os piratas. Descemos. Eu primeiro, Aimée logo
atrás. Assaltou-me, ao pisar terra, uma inquietante sensação de
solidez. Assustou-me aquela obstinada matéria sob os meus pés.
Porém, só compreendi isso mais tarde, bastante mais tarde, ao
conversar com Aimée. Nós, os filhos do céu, vivemos a vida
inteira, o tempo todo, sujeitos ao suave balanço das balsas e das
redes. Os grandes dirigíveis, como o Paris, são muitíssimo mais
estáveis, mas, mesmo neles, se sente uma vaga ondulação.
Curiosamente, nem os meus pais nem ninguém me preparara para aquilo.
Os cheiros, sim, estávamos à espera de um alvoroço de aromas
inéditos, e, quanto a isso, a terra não nos desapontou. Sentámo-nos
por um bom tempo nas rochas, a contemplar a floresta, tentando
habituar-nos a ela e ganhar coragem para entrar. O nevoeiro parecia
agarrar-se aos ramos das árvores.
– Custa
mais do que mergulhar no mar – murmurou Aimée. – Tenho medo.
O
suor corria-me pelo rosto. Ardiam-me os olhos e sentia o coração
aos saltos. Bebi um pouco de água e levantei-me. Parecia-me agora
que também as rochas balançavam. Balançavam mais do que a Maianga.
Estendi a mão para Aimée, mas ela recusou a ajuda. Ergueu-se,
decidida, de um ímpeto, ao mesmo tempo que tirava a pistola do
cinto:
– Pelo
sim, pelo não...
Não
gosto de armas. Vê-la apontar a pistola para a floresta, longe de me
tranquilizar, deixou-me ainda mais aflito. Sabia, contudo, que era
inútil pedir-lhe para a guardar. Portanto, calei-me e segui-a.
Abrimos caminho por entre o capim alto. Acariciei as folhas
reluzentes, muito verdes, molhadas pelo vapor. Afundámos os pés na
terra húmida.
– Eles
tinham razão – soprou Aimée. – Estes cheiros todos
revigoram-me. Apesar do calor, nunca me senti tão viva.
Concordei.
A floresta irradiava uma força regeneradora. A luz, lá dentro,
coada pelas ramagens densas, ganhava um sem-fim de tonalidades
verdes. Insetos minúsculos corriam pelos troncos. Uma rã saltou,
assustada, debaixo dos meus pés. Continuámos a descer. Aimée
escorregou na lama, largando a pistola, e foi a deslizar até bater
na raiz de uma mafumeira. Eu sabia que era uma mafumeira (Ceiba
pentandra), a que os brasileiros chamam sumaumeira, porque, em
criança, costumava folhear, na companhia do meu pai, guias de
árvores e de pássaros. Júlio sabia o nome de todas as árvores, o
nome científico e os diversos nomes por que eram conhecidas, em
português e inglês. Ele mostrava-me as suas árvores preferidas: as
mafumeiras, mulembas, acácias-rubras, goiabeiras, abacateiros e
imbondeiros. A grande paixão de Júlio são as palmeiras, embora
neste caso já não estejamos a falar de árvores. Palmeiras não são
árvores. Pertencem à única família botânica da ordem Arecales,
que inclui os coqueiros e as tamareiras. A mafumeira, originária da
América do Sul e Central, era um símbolo sagrado da mitologia maia.
Já os índios ticuna, da Amazónia, imaginavam uma sumaumeira na
origem do mundo. Uma das suas lendas assegura que, no início dos
tempos, só existia escuridão na terra, uma noite fria e eterna,
resultado da sombra impenetrável de uma gigantesca sumaumeira.
Então, algures no tempo indefinido dessa inesgotável noite, a
sumaumeira tombou com estrondo, abrindo um rasgão no céu e deixando
entrar a luz. Ao cair, a árvore transformou-se num rio – o grande
rio Amazonas. A água e a luz deram origem aos peixes, aos pássaros,
às onças, aos homens e a toda a vida conhecida e por conhecer. Os
índios também chamam à sumaumeira “a escada do céu”, dada a
altura que consegue alcançar. Alguns exemplares chegavam a
ultrapassar os setenta metros. A que se encontrava diante de nós era
ainda jovem. Tinha todo o futuro para crescer. Antes do Dilúvio, a
floresta fechada, com árvores de grande porte, como as sumaumeiras,
não prosperava além dos mil metros. No cume do Pico da Neblina só
existia, na época, capim e magros arbustos.
Aimée
ergueu-se às gargalhadas, sacudindo a lama das calças. Abraçou-se
ao tronco da mafumeira:
– Obrigada,
árvore.
Juntei-me
a ela. Ficámos ali em silêncio, escutando os minúsculos e
misteriosos sons da vida à nossa volta. Na terra, sentia-me
analfabeto. No céu, eu sabia ler as nuvens e, embora não tivesse o
ouvido tão educado quanto o de Patrick, aprendera a distinguir as
diferentes vozes do vento. Ao fim de algum tempo, em silêncio,
comecei a escutar o que me pareceu um assobio.
– Ouves
isto? – perguntei a Aimée. – Que pássaro assobia assim?
– Os
Beatles?! Queres saber que pássaro assobia o “Yesterday”, dos
Beatles?!
Aimée
tinha razão. Alguém (ou alguma coisa) vinha subindo, na nossa
direção, assobiando o “Yesterday”. Lembrei-me do que me contara
o meu pai sobre a origem da famosa canção dos Beatles. Paul
McCartney acordou numa manhã de maio, em 1965, com uma
resplandecente melodia na cabeça. A melodia soava-lhe tão óbvia,
tão natural, que Paul acreditou tê-la escutado algures –
provavelmente, mais do que uma vez. Passou os dias seguintes a
assobiá-la para os amigos, à espera de que algum se recordasse dela
e lhe indicasse o nome do compositor. Escutando-a ali, sob a verde
penumbra de uma floresta secreta, não me espantou que tivesse
emergido de um sonho.
Foi
então que vimos surgir o assobiador. Levei alguns segundos a
reconhecê-lo, tão magro e desvalido estava, em tronco nu e
descalço, as calças em farrapos.
– É
o Boniface?! – soprou Aimée ao meu ouvido. – É ele, não é?
Passou
por nós sem nos ver, ou como se não nos visse. Debruçou-se e
apanhou a pistola que Aimée deixara cair. Rodou-a entre as mãos,
cheirou-a, bateu com ela contra as raízes da mafumeira. A seguir,
como se só então lhe ocorresse a serventia do objeto, segurou-a
firmemente, na posição correta, e apontou-a na nossa direção.
Riu-se. As suas gargalhadas estalavam na penumbra verde da floresta.
Ergui os braços:
– Calma!
Calma! Baixe a arma...
Boniface
fixou em nós uns olhos assombrados:
– O
meu silêncio era mais belo do que o deles – sussurrou. – Mas
talvez não fosse suficientemente belo.
Ergueu
o braço e lançou a pistola para longe. A arma desapareceu entre as
ramagens. Não a escutei cair. O pirata sentou-se nas raízes da
mafumeira, tapou o rosto com as mãos e começou a chorar. Os soluços
sacudiam-lhe o peito magro:
– A
vida inteira só a amei a ela. Maldita feiticeira…
Aimée
voltou-se para mim, os olhos muito abertos, muda de espanto. Não
soube o que retorquir. Peguei-lhe na mão direita e arranquei-a dali.
Só parei quando deixei de ouvir os soluços de Boniface.
– O
tipo está mesmo doido...
– Nom
de Dieu! Toda a gente diz o mesmo. Desde que ouvi pela primeira
vez falar nele, alguém repete isso. Está louco, está louco, mas
está louco porquê?
– Bem,
a mim parece-me louco. Louco como um louco.
– A
mim, parece-me apaixonado.
– Apaixonado?
– Não
compreendes? Ele está apaixonado pela Sibongile. Está apaixonado
por ela há muitos anos.
– Como
sabes?
– Porque
sou mulher.
– Seja
como for, a questão é outra...
– Como
é que ele está vivo?
– Exato.
Como é que ao fim destes dias todos o velho ainda está vivo. O
calor devia tê-lo matado.
– Tens
razão. E se ele está vivo e a passear-se pela floresta, então os
amigos dele podem também andar por aqui. Acho melhor regressarmos.
Concordei.
Começámos a galgar a encosta, agarrando-nos aos troncos e às
raízes, e tentando não escorregar na lama. Finalmente, exaustos,
sujos e suados, alcançámos de novo as rochas nuas. Um rapaz estava
sentado no último penedo, olhando para o alto. Lá em cima, contudo,
só havia nuvens. Uma névoa triste e idêntica, que cobria todo o
horizonte. Aimée agarrou-me a mão com força.
– Mais
surpresas?
Sacudi
a cabeça, incrédulo. O facto de não vermos as balsas talvez fosse
uma má surpresa. A outra era excelente. Soltei a mão de Aimée e
corri:
– Luan!
Luan
ergueu-se de um salto. Abriu os braços para me receber:
– Carlos!
O teu pai disse-nos que virias. Fizeram-se apostas. Ele sempre achou
que tu conseguirias encontrar o caminho para a ilha.
Abraçámo-nos.
Aimée aproximou-se, intrigada:
– Podes
explicar-me o que está a acontecer?
Puxei-a
para nós:
– Este
é o Luan. O meu primo.
– Certo,
e o que faz ele aqui? E onde estão as nossas balsas?
– Calma
– pediu Luan. – Uma pergunta de cada vez. A Maianga deve estar
flutuando acima do nevoeiro. Estava lá no céu quando cheguei. É
uma bela balsa. O tio Júlio estava inspirado quando a desenhou. Mas
vocês parecem cansados. Este calor mata, não?
– Tu,
pelo contrário, não pareces nada cansado – retorqui, pasmado. –
Tens a pele fresca, como quem acabou de sair de uma sala com ar
condicionado.
Luan
riu-se do meu espanto:
– É
uma longa história. Querem ouvir?
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
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