sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Sonhando com leões


[…]
Sabia-se irremediavelmente derrotado e voltou à popa e verificou que a ponta partida da cana encaixava no olhal do leme o suficiente para ele poder governar. Compôs o saco pelos ombros e repôs o esquife no rumo. Vogava ligeiro, e o velho não tinha pensamentos ou sentimentos nenhuns. Passara por tudo, e limitava-se a dirigir o barco para o porto, tão bem e tão inteligentemente quanto podia. Pela noite, tubarões atacaram a carcaça, como alguém pode apanhar migalhas da mesa. O velho não lhes prestou atenção e a nada prestava atenção senão ao leme. Apenas reparava em como o barco singrava bem, muito ligeiro, agora que não levava grande peso na borda.
É muito bom. É sólido e nada sofreu, a não ser a cana, que facilmente se substitui”.
Bem se sentia dentro da corrente, e distinguia as luzes das praias ao longo da costa.
Sabia já onde estava, e nada era voltar.
O vento é nosso amigo, lá isso é, pensou. E depois acrescentou, às vezes. E o mar largo com os nossos amigos e inimigos. E a cama. A cama é minha amiga. Só a cama. A cama há-de ser uma grande coisa. É fácil, agora que foste vencido. Nunca supus como era tão fácil. E o que te derrotou!”
Nada exclamou. Saí muito para o largo.
Quando entrou no pequeno porto, as luzes do Terraço estavam apagadas, bem sabia que todos dormiam já. A brisa refrescara muito e soprava forte. O porto, porém, estava calmo, e navegou até à pequena praia de seixos abaixo das rochas. Não havia quem o ajudasse, e puxou o barco para cima até onde pôde. Depois, desembarcou, e amarrou-o a um rochedo.
Tirou o mastro, enrolou a vela e colheu-a. Pôs o mastro ao ombro e começou a subir. Foi então que soube a profundidade do seu cansaço. Parou um momento e olhou para trás e distinguiu ao clarão da luz da rua a grande cauda do peixe erguendo-se bem por cima da popa do esquife. Viu a branca linha desnuda da espinha dorsal e a massa sombria da cabeça com a lança projetando-se e o total descarnado do corpo.
Recomeçou a subir e, no cimo, caiu e ficou algum tempo estendido, com o mastro sobre os ombros. Procurou levantar-se. Mas era muito difícil, e ali ficou sentado, com o mastro ao ombro, a olhar para a estrada. Um gato passou do outro lado, que ia à sua vida, e o velho esteve a segui-lo com os olhos. Depois, apenas fitava a estrada.
Por fim, pousou o mastro e levantou-se. Voltou a pegar no mastro, pô-lo ao ombro, e dirigiu-se para a estrada. Cinco vezes teve de sentar-se, antes de chegar à sua cabana.
Lá dentro, encostou o mastro à parede. No escuro, achou a garrafa da água e bebeu uma golada. Depois, estendeu-se na cama. Puxou para os ombros o cobertor e para as costas e as pernas, e adormeceu de bruços nos jornais, com os braços estendidos e as palmas viradas para cima.
Dormia, quando pela manhã o rapaz espreitou à porta.
Ventava com tanta violência, que os barcos de vela não saíram, e o rapaz dormira até mais tarde, e viera depois à cabana do velho, como vinha todas as manhãs. O rapaz viu que o velho respirava, e viu a seguir as mãos dele, e desatou a chorar. Saiu muito silenciosamente, para ir buscar café, e pelo caminho fora ia chorando.
Vários pescadores rodeavam o esquife, olhando para o que a ele estava amarrado, e um estava metido na água, de calças arregaçadas, a medir com uma linha o esqueleto.
O rapaz não desceu à praia. Já lá estivera, e um dos pescadores ficara por ele a guardar o barco.
Como está ele? berrou um dos pescadores.
A dormir gritou o rapaz. Não se importava de que o vissem a chorar. Que ninguém o incomode.
Tinha mais de seis metros do nariz à cauda exclamou o pescador que estava a medir.
Acredito respondeu o rapaz.
Entrou no Terraço e pediu uma caneca de café.
Quente, e com muito leite e açúcar.
Mais nada?
não. Hei-de ver depois o que ele pode comer.
Mas que peixe! disse o proprietário. Nunca se viu um peixe assim. Também eram bons os dois que pescaste ontem.
Que o diabo os leve praguejou o rapaz, desatando outra vez a chorar.
Queres beber alguma coisa? ofereceu o dono.
Não. Eles que não macem o Santiago. Eu volto já.
Diz-lhe que lamento muito.
Obrigado.
O rapaz levou o café quente até à cabana e sentou-se junto do velho, à espera de ele acordar. Certa vez, parecia que ele ia acordar. Mas recaíra no sono profundo, e o rapaz teve de atravessar o caminho, para pedir lenha e aquecer o café.
O velho acordou enfim.
Não te levantes para cima disse o rapaz. Bebe.
E deitou café num copo.
O velho pegou no copo e bebeu.
Venceram-me, Manolin. A verdade é que me venceram.
Ele não te venceu. O peixe, não.
Não. É verdade. Foi a seguir.
O Pedrico está a tomar conta do barco e da palamenta.
Que queres que se faça à cabeça?
O Pedrico que a leve para armadilhas.
E a lança?
Fica tu com ela, se quiseres.
Quero disse o rapaz. E agora temos de assentar as outras coisas.
Procuraram-me?
Claro que sim. Os guarda-costas e os aviões.
O oceano é muito grande e o esquife é pequeno e difícil de ver comentou o velho. E notou como era agradável ter com quem falar, em vez de falar só consigo e com o mar. – Senti a tua falta disse. Que apanhaste?
No primeiro dia, um. Outro no segundo, e dois no terceiro.
Foi muito bom.
Agora voltamos a pescar juntos.
Não. Eu não tenho sorte. Já não torno a ter sorte.
Para o diabo a sorte. Eu levo a sorte comigo.
E que dirá a tua família?
Quero lá saber! Pesquei ontem dois. Mas havemos de pescar juntos, que eu ainda tenho muito que aprender.
Precisamos de arranjar uma boa lança e tê-la sempre a bordo. A lâmina pode fazer-se de uma folha de molas de um Ford velho. Amolamo-la em Guanabacoa. Tem de ficar afiada; e não temperada assim, parte-se. A minha faca partiu-se.
Eu arranjo outra faca e trato de afiar a mola. Quantos dias de brisa fresca ainda temos?
Talvez três. Talvez mais.
Porei tudo em ordem. Trata de curar as tuas mãos, meu velho.
Bem sei como sará-las. De noite, cuspi uma coisa esquisita e senti rebentar-me qualquer coisa no peito.
Cura isso também. Deita-te, velho, que eu trago-te a camisa lavada. E de comer.
Traz-me jornais de quando andei por fora -- disse o velho.
Tens de te pôr bom depressa, porque ainda há muito para eu aprender e tu és capaz de me ensinar tudo. Sofreste muito?
Imenso.
Eu trago-te a comida e os jornais. Repousa, velho. Hei-de trazer da farmácia um remédio para as mãos.
Não te esqueças de dizer ao Pedrico que é dele a cabeça.
Não. Hei-de lembrar-me.
O rapaz, saída a porta e descendo o caminho aberto no coral gasto, chorava.
Nessa tarde, havia no Terraço um grupo de turistas e, olhando para a água, entre latas de cerveja vazias e barracudas mortas, uma mulher viu a enorme espinha branca com a portentosa cauda à ponta, que arfava e balouçava na maré, enquanto o vento leste levantava um mar picado e cadenciado, fora da entrada do porto.
Que é aquilo? perguntou ela a um criado, e apontava para a longa espinha dorsal do grande peixe, que era apenas lixo à espera de que o levasse a maré.
Tiburon respondeu o criado. Tubarão. Queria explicar-lhe o que acontecera.
Não supunha que os tubarões tivessem caudas tão belas, tão lindamente formadas.
Nem eu – disse o companheiro dela.
Ao cimo da estrada, na sua cabana, o velho adormecera outra vez. Ainda dormia de bruços, e o rapaz estava sentado ao pé dele, a observá-lo. O velho estava a sonhar com os leões.

Fim

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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