[…]
Sabia-se
irremediavelmente derrotado e voltou à popa e verificou que a ponta
partida da cana encaixava no olhal do leme o suficiente para ele
poder governar. Compôs o saco pelos ombros e repôs o esquife no
rumo. Vogava ligeiro, e o velho não tinha pensamentos ou sentimentos
nenhuns. Passara por tudo, e limitava-se a dirigir o barco para o
porto, tão bem e tão inteligentemente quanto podia. Pela noite,
tubarões atacaram a carcaça, como alguém pode apanhar migalhas da
mesa. O velho não lhes prestou atenção e a nada prestava atenção
senão ao leme. Apenas reparava em como o barco singrava bem, muito
ligeiro, agora que não levava grande peso na borda.
“É
muito bom. É sólido e nada sofreu, a não ser a cana, que
facilmente se substitui”.
Bem
se sentia dentro da corrente, e distinguia as luzes das praias ao
longo da costa.
Sabia
já onde estava, e nada era voltar.
“O
vento é nosso amigo, lá isso é, pensou. E depois acrescentou, às
vezes. E o mar largo com os nossos amigos e inimigos. E a cama. A
cama é minha amiga. Só a cama. A cama há-de ser uma grande coisa.
É fácil, agora que foste vencido. Nunca supus como era tão fácil.
E o que te derrotou!”
– Nada
– exclamou. –
Saí muito para o largo.
Quando
entrou no pequeno porto, as luzes do Terraço estavam apagadas, bem
sabia que todos dormiam já. A brisa refrescara muito e soprava
forte. O porto, porém, estava calmo, e navegou até à pequena praia
de seixos abaixo das rochas. Não havia quem o ajudasse, e puxou o
barco para cima até onde pôde. Depois, desembarcou, e amarrou-o a
um rochedo.
Tirou
o mastro, enrolou a vela e colheu-a. Pôs o mastro ao ombro e começou
a subir. Foi então que soube a profundidade do seu cansaço. Parou
um momento e olhou para trás e distinguiu ao clarão da luz da rua a
grande cauda do peixe erguendo-se bem por cima da popa do esquife.
Viu a branca linha desnuda da espinha dorsal e a massa sombria da
cabeça com a lança projetando-se e o total descarnado do corpo.
Recomeçou
a subir e, no cimo, caiu e ficou algum tempo estendido, com o mastro
sobre os ombros. Procurou levantar-se. Mas era muito difícil, e ali
ficou sentado, com o mastro ao ombro, a olhar para a estrada. Um gato
passou do outro lado, que ia à sua vida, e o velho esteve a segui-lo
com os olhos. Depois, apenas fitava a estrada.
Por
fim, pousou o mastro e levantou-se. Voltou a pegar no mastro, pô-lo
ao ombro, e dirigiu-se para a estrada. Cinco vezes teve de sentar-se,
antes de chegar à sua cabana.
Lá
dentro, encostou o mastro à parede. No escuro, achou a garrafa da
água e bebeu uma golada. Depois, estendeu-se na cama. Puxou para os
ombros o cobertor e para as costas e as pernas, e adormeceu de bruços
nos jornais, com os braços estendidos e as palmas viradas para cima.
Dormia,
quando pela manhã o rapaz espreitou à porta.
Ventava
com tanta violência, que os barcos de vela não saíram, e o rapaz
dormira até mais tarde, e viera depois à cabana do velho, como
vinha todas as manhãs. O rapaz viu que o velho respirava, e viu a
seguir as mãos dele, e desatou a chorar. Saiu muito silenciosamente,
para ir buscar café, e pelo caminho fora ia chorando.
Vários
pescadores rodeavam o esquife, olhando para o que a ele estava
amarrado, e um estava metido na água, de calças arregaçadas, a
medir com uma linha o esqueleto.
O
rapaz não desceu à praia. Já lá estivera, e um dos pescadores
ficara por ele a guardar o barco.
– Como
está ele? – berrou um dos
pescadores.
– A
dormir – gritou o rapaz. Não se
importava de que o vissem a chorar. –
Que ninguém o incomode.
– Tinha
mais de seis metros do nariz à cauda –
exclamou o pescador que estava a medir.
– Acredito
– respondeu o rapaz.
Entrou
no Terraço e pediu uma caneca de café.
– Quente,
e com muito leite e açúcar.
– Mais
nada?
– não.
Hei-de ver depois o que ele pode comer.
– Mas
que peixe! – disse o
proprietário. – Nunca se viu um
peixe assim. Também eram bons os dois que pescaste ontem.
– Que
o diabo os leve – praguejou o
rapaz, desatando outra vez a chorar.
– Queres
beber alguma coisa? – ofereceu o
dono.
– Não.
Eles que não macem o Santiago. Eu volto já.
– Diz-lhe
que lamento muito.
– Obrigado.
O
rapaz levou o café quente até à cabana e sentou-se junto do velho,
à espera de ele acordar. Certa vez, parecia que ele ia acordar. Mas
recaíra no sono profundo, e o rapaz teve de atravessar o caminho,
para pedir lenha e aquecer o café.
O
velho acordou enfim.
– Não
te levantes para cima – disse o
rapaz. – Bebe.
E
deitou café num copo.
O
velho pegou no copo e bebeu.
– Venceram-me,
Manolin. A verdade é que me venceram.
– Ele
não te venceu. O peixe, não.
– Não.
É verdade. Foi a seguir.
– O
Pedrico está a tomar conta do barco e da palamenta.
– Que
queres que se faça à cabeça?
– O
Pedrico que a leve para armadilhas.
– E
a lança?
– Fica
tu com ela, se quiseres.
– Quero
– disse o rapaz. –
E agora temos de assentar as outras coisas.
– Procuraram-me?
– Claro
que sim. Os guarda-costas e os aviões.
– O
oceano é muito grande e o esquife é pequeno e difícil de ver –
comentou o velho. E notou como era agradável ter com quem falar, em
vez de falar só consigo e com o mar. – Senti a tua falta –
disse. – Que apanhaste?
– No
primeiro dia, um. Outro no segundo, e dois no terceiro.
– Foi
muito bom.
– Agora
voltamos a pescar juntos.
– Não.
Eu não tenho sorte. Já não torno a ter sorte.
– Para
o diabo a sorte. Eu levo a sorte comigo.
– E
que dirá a tua família?
– Quero
lá saber! Pesquei ontem dois. Mas havemos de pescar juntos, que eu
ainda tenho muito que aprender.
– Precisamos
de arranjar uma boa lança e tê-la sempre a bordo. A lâmina pode
fazer-se de uma folha de molas de um Ford velho. Amolamo-la em
Guanabacoa. Tem de ficar afiada; e não temperada assim, parte-se. A
minha faca partiu-se.
– Eu
arranjo outra faca e trato de afiar a mola. Quantos dias de brisa
fresca ainda temos?
– Talvez
três. Talvez mais.
– Porei
tudo em ordem. Trata de curar as tuas mãos, meu velho.
– Bem
sei como sará-las. De noite, cuspi uma coisa esquisita e senti
rebentar-me qualquer coisa no peito.
– Cura
isso também. Deita-te, velho, que eu trago-te a camisa lavada. E de
comer.
– Traz-me
jornais de quando andei por fora -- disse o velho.
– Tens
de te pôr bom depressa, porque ainda há muito para eu aprender e tu
és capaz de me ensinar tudo. Sofreste muito?
– Imenso.
– Eu
trago-te a comida e os jornais. Repousa, velho. Hei-de trazer da
farmácia um remédio para as mãos.
– Não
te esqueças de dizer ao Pedrico que é dele a cabeça.
– Não.
Hei-de lembrar-me.
O
rapaz, saída a porta e descendo o caminho aberto no coral gasto,
chorava.
Nessa
tarde, havia no Terraço um grupo de turistas e, olhando para a água,
entre latas de cerveja vazias e barracudas mortas, uma mulher viu a
enorme espinha branca com a portentosa cauda à ponta, que arfava e
balouçava na maré, enquanto o vento leste levantava um mar picado e
cadenciado, fora da entrada do porto.
– Que
é aquilo? – perguntou ela a um
criado, e apontava para a longa espinha dorsal do grande peixe, que
era apenas lixo à espera de que o levasse a maré.
– Tiburon
– respondeu o criado. –
Tubarão. – Queria explicar-lhe
o que acontecera.
– Não
supunha que os tubarões tivessem caudas tão belas, tão lindamente
formadas.
– Nem eu – disse o companheiro dela.
Ao
cimo da estrada, na sua cabana, o velho adormecera outra vez. Ainda
dormia de bruços, e o rapaz estava sentado ao pé dele, a
observá-lo. O velho estava a sonhar com os leões.
Fim
Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar
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