Ou
o Dr. Keither é muito imaginoso ou lhe têm acontecido coisas
realmente fantásticas. Estávamos sentados os dois junto à escada
que vai dar no refeitório — era a hora do crepúsculo, a hora das
confidências — e ele começou a falar com a sua voz pausada e
firme, como quem presta um depoimento.
Certa
vez, disse ele, eu me encontrava em Dresden ao anoitecer e vinha
caminhando por uma rua deserta e sem plátanos, onde ainda havia
algumas ruínas da última e da penúltima guerra. Tudo estava em
absoluta calma, e eu era o único passante naquela pequena rua de
subúrbio que ia ter justamente onde eu morava com a minha mulher e
um gato, para não dizer da minha coleção de selos e de gafanhotos
chineses. As casas estavam todas abertas, mas era como se tivessem
sido abandonadas às pressas por seus moradores racionais e
irracionais: não se via vivalma dentro delas nem às janelas, embora
eu me lembre de ter passado diante de uma onde havia sobre uma mesa
um caixão de defunto, mas sem velas.
Eis
senão quando, do fim da rua, a uma distância de uns quinhentos
metros, vejo caminhar em minha direção, rugindo e bramindo com uma
violência inaudita — imagine quem? Nada mais nada menos do que o
próprio mar em pessoa, com suas ondas revoltas e sua cor pálida de
azinhavre, tal como eu o vira sempre no cinema, nas cenas de
tempestade. Estaquei paralisado junto a um poste, o cigarro aceso
entre os dedos, sem poder ao menos expelir a fumaça que ainda trazia
dentro do peito e que me sufocava. Numa fração de segundo
compreendi toda a tragédia que se desenrolava à minha vista, embora
não quisesse acreditar nela e tudo aquilo me parecesse absurdo e sem
sentido — pois o dia era calmo e os jornais da tarde não haviam
noticiado nada a respeito. Por esse instinto de conservação que em
nós ainda é mais forte do que em qualquer outro quadrúpede, vi-me
de repente a correr como um louco pelo meio da rua, rumo à cidade
alta, ainda tendo preso entre os dedos o resto do cigarro aceso, que
em vão tentava arremessar fora por me pesar como um fardo de cem
quilos.
Corria
desabaladamente rua acima, tropeçando na minha própria sombra e
sentindo o cheiro do mar e o seu rumor insano bem junto aos meus
calcanhares embora em verdade ele ainda estivesse a uns três
quarteirões atrás, como podia verificar quando parava um segundo
para tomar fôlego. Não encontrei ninguém nessa minha escalada
fulminante, e não ser um arcebispo morto e agarrado a um grande
crucifixo, e que trazia no rosto a própria imagem do terror, como de
resto ocorre com todos os arcebispos mortos que tenho visto. Ao
chegar ao topo da rua, onde havia um banco recém-inaugurado pela
prefeitura, caí exausto e com o cigarro a essa altura já me
devorando metade de um dedo — mas ainda tive a presença de
espírito necessária para constatar que ao meu encalço não vinha
vindo mar nenhum, nem sequer mesmo um rio, e que a velha rua por onde
passara estava mais seca do que o Saara ao meio-dia, até onde meu
olhar podia divisá-la no horizonte.
Mas
o que há de estranhável em tudo isso é que Dresden nunca foi porto
de mar, como o pode atestar qualquer estudante de geografia e como eu
mesmo pude confirmar no dia seguinte, indo à chefatura de polícia.
De
outra vez eu me encontrava num cemitério andaluz — aonde fora
levar um amigo morto de beribéri — e de repente senti que um sono
invencível me possuía e me obrigava a dormir no primeiro túmulo
que encontrasse pela frente, a menos que preferisse naturalmente
dormir de pé.
Quando
acordei já era noite alta e ao meu redor reinava o mais perfeito
silêncio, esse silêncio que só os cemitérios têm em noites de
lua cheia, mesmo durante a guerra. Eu, que não sou medroso no que
diz respeito à morte e aos mortos, tratei de levantar-me, corrigir o
vinco das calças e sair à procura do coveiro de plantão, para que
ele me pudesse abrir o portão do cemitério.
Ao
passar sobre uma sepultura rasa, porém — o luar era magnífico —
pude com assombro constatar que o morto se achava sepultado bem à
flor da terra, dentro de um caixão cuja tampa era de vidro
transparente, como ocorre aliás com certos caixões de luxo que
transportam altas personalidades. A princípio pensei tratar-se de um
sonho, e cheguei mesmo a desferir um pontapé sobre aquela tampa
translúcida que brilhava à luz da lua, como um grande diamante que
houvesse num terremoto aflorado à superfície; os estilhaços de
vidro partiram para todos os lados, e eu pude ver claramente a cara
do morto, com uns óculos de tartaruga assestados sobre o nariz.
Embora,
repito, não temesse a mortos de nenhuma espécie, aquele
morto-de-óculos-dentro-daquele-caixão-de-vidro-bem-à-flor-da-terra
não deixou de causar-me um súbito mal-estar e penso que ocorreria
com você ou qualquer outro nas mesmas circunstâncias. À medida,
porém, que me afastava daquela sepultura inusitada e procurava o
caminho do portão central, pude verificar com os meus olhos bem
abertos que todas as sepulturas sem túmulo tinham exatamente o mesmo
aspecto transparente e superficial, deixando entrever em seu último
repouso (a lua era bela) os respectivos defuntos ou defuntas, alguns
já em adiantado estado de putrefação.
Após
correr cem jardas em menos de três segundos, bati violentamente à
porta da casa onde deveria estar o zelador da noite mas onde ele
realmente não estava, pois que ninguém ali me atendeu até o
despertar da aurora — quando fui encontrado com a mão direita em
carne viva e o espírito um tanto ou quanto perturbado, como era
natural que acontecesse mesmo em se tratando de um veterano de
guerra.
O
cemitério onde se passou isso não sei dizer se foi em Córdoba ou
em Sevilha, mas posso afirmar que se trata de fato absolutamente
autêntico.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua vem da Ásia
Nenhum comentário:
Postar um comentário