quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Dois Capítulos Num Só

Ou o Dr. Keither é muito imaginoso ou lhe têm acontecido coisas realmente fantásticas. Estávamos sentados os dois junto à escada que vai dar no refeitório — era a hora do crepúsculo, a hora das confidências — e ele começou a falar com a sua voz pausada e firme, como quem presta um depoimento.
Certa vez, disse ele, eu me encontrava em Dresden ao anoitecer e vinha caminhando por uma rua deserta e sem plátanos, onde ainda havia algumas ruínas da última e da penúltima guerra. Tudo estava em absoluta calma, e eu era o único passante naquela pequena rua de subúrbio que ia ter justamente onde eu morava com a minha mulher e um gato, para não dizer da minha coleção de selos e de gafanhotos chineses. As casas estavam todas abertas, mas era como se tivessem sido abandonadas às pressas por seus moradores racionais e irracionais: não se via vivalma dentro delas nem às janelas, embora eu me lembre de ter passado diante de uma onde havia sobre uma mesa um caixão de defunto, mas sem velas.
Eis senão quando, do fim da rua, a uma distância de uns quinhentos metros, vejo caminhar em minha direção, rugindo e bramindo com uma violência inaudita — imagine quem? Nada mais nada menos do que o próprio mar em pessoa, com suas ondas revoltas e sua cor pálida de azinhavre, tal como eu o vira sempre no cinema, nas cenas de tempestade. Estaquei paralisado junto a um poste, o cigarro aceso entre os dedos, sem poder ao menos expelir a fumaça que ainda trazia dentro do peito e que me sufocava. Numa fração de segundo compreendi toda a tragédia que se desenrolava à minha vista, embora não quisesse acreditar nela e tudo aquilo me parecesse absurdo e sem sentido — pois o dia era calmo e os jornais da tarde não haviam noticiado nada a respeito. Por esse instinto de conservação que em nós ainda é mais forte do que em qualquer outro quadrúpede, vi-me de repente a correr como um louco pelo meio da rua, rumo à cidade alta, ainda tendo preso entre os dedos o resto do cigarro aceso, que em vão tentava arremessar fora por me pesar como um fardo de cem quilos.
Corria desabaladamente rua acima, tropeçando na minha própria sombra e sentindo o cheiro do mar e o seu rumor insano bem junto aos meus calcanhares embora em verdade ele ainda estivesse a uns três quarteirões atrás, como podia verificar quando parava um segundo para tomar fôlego. Não encontrei ninguém nessa minha escalada fulminante, e não ser um arcebispo morto e agarrado a um grande crucifixo, e que trazia no rosto a própria imagem do terror, como de resto ocorre com todos os arcebispos mortos que tenho visto. Ao chegar ao topo da rua, onde havia um banco recém-inaugurado pela prefeitura, caí exausto e com o cigarro a essa altura já me devorando metade de um dedo — mas ainda tive a presença de espírito necessária para constatar que ao meu encalço não vinha vindo mar nenhum, nem sequer mesmo um rio, e que a velha rua por onde passara estava mais seca do que o Saara ao meio-dia, até onde meu olhar podia divisá-la no horizonte.
Mas o que há de estranhável em tudo isso é que Dresden nunca foi porto de mar, como o pode atestar qualquer estudante de geografia e como eu mesmo pude confirmar no dia seguinte, indo à chefatura de polícia.
De outra vez eu me encontrava num cemitério andaluz — aonde fora levar um amigo morto de beribéri — e de repente senti que um sono invencível me possuía e me obrigava a dormir no primeiro túmulo que encontrasse pela frente, a menos que preferisse naturalmente dormir de pé.
Quando acordei já era noite alta e ao meu redor reinava o mais perfeito silêncio, esse silêncio que só os cemitérios têm em noites de lua cheia, mesmo durante a guerra. Eu, que não sou medroso no que diz respeito à morte e aos mortos, tratei de levantar-me, corrigir o vinco das calças e sair à procura do coveiro de plantão, para que ele me pudesse abrir o portão do cemitério.
Ao passar sobre uma sepultura rasa, porém — o luar era magnífico — pude com assombro constatar que o morto se achava sepultado bem à flor da terra, dentro de um caixão cuja tampa era de vidro transparente, como ocorre aliás com certos caixões de luxo que transportam altas personalidades. A princípio pensei tratar-se de um sonho, e cheguei mesmo a desferir um pontapé sobre aquela tampa translúcida que brilhava à luz da lua, como um grande diamante que houvesse num terremoto aflorado à superfície; os estilhaços de vidro partiram para todos os lados, e eu pude ver claramente a cara do morto, com uns óculos de tartaruga assestados sobre o nariz.
Embora, repito, não temesse a mortos de nenhuma espécie, aquele morto-de-óculos-dentro-daquele-caixão-de-vidro-bem-à-flor-da-terra não deixou de causar-me um súbito mal-estar e penso que ocorreria com você ou qualquer outro nas mesmas circunstâncias. À medida, porém, que me afastava daquela sepultura inusitada e procurava o caminho do portão central, pude verificar com os meus olhos bem abertos que todas as sepulturas sem túmulo tinham exatamente o mesmo aspecto transparente e superficial, deixando entrever em seu último repouso (a lua era bela) os respectivos defuntos ou defuntas, alguns já em adiantado estado de putrefação.
Após correr cem jardas em menos de três segundos, bati violentamente à porta da casa onde deveria estar o zelador da noite mas onde ele realmente não estava, pois que ninguém ali me atendeu até o despertar da aurora — quando fui encontrado com a mão direita em carne viva e o espírito um tanto ou quanto perturbado, como era natural que acontecesse mesmo em se tratando de um veterano de guerra.
O cemitério onde se passou isso não sei dizer se foi em Córdoba ou em Sevilha, mas posso afirmar que se trata de fato absolutamente autêntico.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua vem da Ásia

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