Ao
crepúsculo a mulher bela estava quieta, e me detive a examinar sua
cabeça com a atenção e o extremado carinho de quem fixa uma flor.
Sobre a haste do colo fino estava apenas trêmula; talvez a leve
brisa do mar; talvez o estremecimento de seu próprio crepúsculo.
Era
tão linda assim, entardecendo, que me perguntei se já estávamos
preparados, nós, os rudes homens destes tempos, para testemunhar a
sua fugaz presença sobre a terra. Foram precisos milênios de luta
contra a animalidade, milênios de milênios de sonho para se obter
esse desenho delicado e firme. Depois os ombros são subitamente
fortes, para suster os braços longos; mas os seios são pequenos, e
o corpo esgalgo foge para a cintura breve; logo as ancas readquirem o
direito de ser graves, e as coxas são longas, as pernas desse
escorço de corça, os tornozelos de raça, os pés repetindo em
outro ritmo a exata melodia das mãos.
Ela
e o mar entardeciam, mas, a um leve movimento que fez, seus olhos
tomaram o brilho doce da adolescência, sua voz era um pouco rouca.
Não teve filhos. Talvez pense na filha que não teve... A forma do
vaso sagrado não se repetirá nestas gerações turbulentas e talvez
desapareça para sempre no crepúsculo que avança. Que fizemos desse
sonho de deusa? De tudo o que lhe fizemos só lhe ficou o olhar
triste, como diria o pobre Antônio, poeta português. O desejo de
alguns a seguiu e a possuiu; outros ainda se erguerão como torvas
chamas rubras, e virão crestá-la, eis ali um homem que avança na
eterna marcha banal.
Contemplo-a...
Não, Deus não tem facilidade para desenhar. Ele faz e refaz sem
cessar Suas figuras, porque o erro e a desídia dos homens entorpecem
Sua mão: de geração em geração, que longa paciência Ele não
teve para juntar a essa linha do queixo essa orelha breve, para
firmar bem a polpa da panturrilha. Sim, foi a própria mão divina em
um momento difícil e feliz. Depois Ele disse: anda... E ela começou
a andar entre os humanos. Agora está aqui entardecendo; a brisa em
seus cabelos pensa melancolias. As unhas são rubras; os cabelos
também ela os pintou; é uma mulher de nosso tempo; mas neste
momento, perto do mar, é menos uma pessoa que um sonho de onda,
fantasia de luz entre nuvens, avideusa trêmula, evanescente e
eterna.
Mas
para que despetalar palavras tolas sobre sua cabeça? Na verdade não
há o que dizer; apenas olhar, olhar como quem reza, e depois, antes
que a noite desça de uma vez, partir.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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