quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Rio de sangue | 14

Não pude mais conter a vontade de cavalgar pelos campos, de nadar pelos rios e deslizar sobre a terra com pés e corpo. Mirava a casa em ruína do outro lado da estrada, a parede onde esculpiram São Pedro com as chaves do céu, num dia, e noutro não mais existia, derrubada pela chuva que caía fina. Sentia saudade de um corpo se movimentando entre o povo nas noites de festa que já não existiam. Havia profundidade nos olhares, nas preces, nos encantados, índios, negros, brancos, santos católicos, caboclos das matas, chegando um após outro, e preenchendo o vazio dos campos da caatinga: sem deus, sem remédio, sem justiça, sem terra. Se esqueceram da encantada, seu nome talvez não seja mais lembrado, e a encantada vai se esquecendo de quem é, muito se aproxima a sua hora.
Deslizei para o leito de Bibiana como um sopro. Primeiro quis confortar sua dor, que crescia como a capoeira num campo abandonado. Adentrei seu fôlego para ocupar o vazio de seus olhos, para que a minha presença fosse tão intensa como se a envolvesse em abraços. Mas havia esquecido a energia de cavalgar um corpo, e como era bom estar de novo envolvida dos rios de sangue, da chama de um peito que pulsava vivo, dos olhos embotados, dos desejos e da liberdade. Levantei Bibiana da cama, andei de um lado a outro, ergui seus braços a cada volta que dava na sala, venerei com as pontas dos dedos cada fração da pele escura.
Caminhar pela casa no alto da madrugada se tornou pouco diante da vastidão do mundo e do que, juntas, poderíamos fazer. Cada mulher sabe a força da natureza que abriga na torrente que flui de sua vida. Deixei a casa para fazer o que mais gostava, para molhar meus pés na beira do rio. Levei Bibiana para caminhar no fundo da noite, ouvindo o pio da coruja, orvalhando seu corpo ao raiar do dia. Seus braços fortes estavam prontos para abater a caça. Enterrei a enxada num terreno acidentado para fazer o fojo. Arranquei um torrão de terra. Na escuridão os olhos eram dois faróis iluminando o horizonte. Bibiana havia sido levada para um dos muitos cantos de Água Negra e seu corpo guardava a voragem dos sobreviventes. A cada golpe soprava um mal que havia visto. Uma mulher que matou seu filho para que não fosse escravo. Um homem ofendido e pendurado num galho de jatobá. Cada golpe levantava uma grande quantidade de terra úmida da margem do rio. Outro golpe. Outro. A terra feito areia atravessa o espaço, volta ao rio, soterra um arbusto de melão-do-mato.
A cada noite atravesso os caminhos, vejo a ruína da casa em que reinavam os encantados. Deslizo, como uma semente encontrando a terra arada, para o corpo de Bibiana. Retomo seu fôlego. Retorno ao mesmo lugar onde vai surgindo um fojo. O lugar mais escuro de nossas noites. A enxada desce sobre a cova, que ganha contornos definidos. A terra pode ser uma armadilha. Vamos caçar um animal feroz que anda à solta, apavorando a gente de Água Negra. A onça que sua avó via, só ela via, e por isso pedia para terem cuidado. A onça era uma lembrança daquele passado tão distante e havia retornado para amedrontar os moradores. Não era a onça que havia protegido seu pai louco no meio da mata. A onça que passamos a caçar havia derramado sangue e estava disposta a rasgar a carne de mais gente, até conseguir o que queria.
São tantas noites cavando a terra para o fojo que as mãos de Bibiana estão laceradas. Quando deixo seu corpo pela manhã, ela cuida das palmas dormentes e castigadas com bolhas e feridas surgidas de nossa guerra.
Então, num dia qualquer, atravessei o terreiro e cheguei a Belonísia. Estava sozinha como Miúda. Selvagem, conhecia a terra como ninguém. Me uni ao seu corpo para vagar pela terra, para correr os marimbus, atravessar cercas, pelos rios, por casas e árvores mortas. Seu nome era coragem. Era da linhagem de Donana, a mulher que pariu no canavial, que ergueu casa e roça com a força de seu corpo. A mulher que sentiu as dores do parto e deitou em silêncio, mordendo os lábios para parir mais um filho. A que enterrou dois maridos, e só não enterrou o último por que o sangrou como se sangra uma caça. Foi cavalgando seu corpo que senti que o passado nunca nos abandona. Belonísia era a fúria que havia cruzado o tempo. Era filha da gente forte que atravessou um oceano, que foi separada de sua terra, que deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma vida nova e iluminada. Gente que atravessou tudo suportando a crueldade que lhes foi imposta.
Foi na manhã fria, antes que o povo seguisse agasalhado para o trabalho, que seu corpo ardeu como uma labareda. Sabia que a onça fazia sua ronda pela estrada. Mas e se alguém a desafiasse e provocasse para que ela adentrasse a mata? Para que caísse no fojo que construímos com nossas mãos e com as forças dos ancestrais? E a sangrasse para encontrar o sossego? Para afastar o medo que sua presença emanava? O som do machado que nunca existiu desceu sobre a madeira. O som de um arado arranhando a carne. Os sons que a boca de Belonísia não era capaz de reproduzir, mas que, naquele instante, soaram forte como um trovão.
Vejo pelo interior de seus olhos.
A onça caiu sobre a borda do fojo, sustentando o corpo com as garras para não ser lançada em definitivo para o buraco. Assustou-se com a armadilha escondida no meio da mata, coberta de taboa seca e palha de buriti. Há quem jure que capatazes usaram as mesmas armadilhas de caça para capturar escravos fugidos no passado. A onça caiu com as presas enterradas no chão. Retirou uma porção de terra da boca. Não, era uma armadilha tola para capturar uma caça. Mas, antes que levantasse, se abateu sobre seu pescoço um único golpe carregado de uma emoção violenta, que até então desconhecia.
Sobre a terra há de viver sempre o mais forte.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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