Não
pude mais conter a vontade de cavalgar pelos campos, de nadar pelos
rios e deslizar sobre a terra com pés e corpo. Mirava a casa em
ruína do outro lado da estrada, a parede onde esculpiram São Pedro
com as chaves do céu, num dia, e noutro não mais existia, derrubada
pela chuva que caía fina. Sentia saudade de um corpo se movimentando
entre o povo nas noites de festa que já não existiam. Havia
profundidade nos olhares, nas preces, nos encantados, índios,
negros, brancos, santos católicos, caboclos das matas, chegando um
após outro, e preenchendo o vazio dos campos da caatinga: sem deus,
sem remédio, sem justiça, sem terra. Se esqueceram da encantada,
seu nome talvez não seja mais lembrado, e a encantada vai se
esquecendo de quem é, muito se aproxima a sua hora.
Deslizei
para o leito de Bibiana como um sopro. Primeiro quis confortar sua
dor, que crescia como a capoeira num campo abandonado. Adentrei seu
fôlego para ocupar o vazio de seus olhos, para que a minha presença
fosse tão intensa como se a envolvesse em abraços. Mas havia
esquecido a energia de cavalgar um corpo, e como era bom estar de
novo envolvida dos rios de sangue, da chama de um peito que pulsava
vivo, dos olhos embotados, dos desejos e da liberdade. Levantei
Bibiana da cama, andei de um lado a outro, ergui seus braços a cada
volta que dava na sala, venerei com as pontas dos dedos cada fração
da pele escura.
Caminhar
pela casa no alto da madrugada se tornou pouco diante da vastidão do
mundo e do que, juntas, poderíamos fazer. Cada mulher sabe a força
da natureza que abriga na torrente que flui de sua vida. Deixei a
casa para fazer o que mais gostava, para molhar meus pés na beira do
rio. Levei Bibiana para caminhar no fundo da noite, ouvindo o pio da
coruja, orvalhando seu corpo ao raiar do dia. Seus braços fortes
estavam prontos para abater a caça. Enterrei a enxada num terreno
acidentado para fazer o fojo. Arranquei um torrão de terra. Na
escuridão os olhos eram dois faróis iluminando o horizonte. Bibiana
havia sido levada para um dos muitos cantos de Água Negra e seu
corpo guardava a voragem dos sobreviventes. A cada golpe soprava um
mal que havia visto. Uma mulher que matou seu filho para que não
fosse escravo. Um homem ofendido e pendurado num galho de jatobá.
Cada golpe levantava uma grande quantidade de terra úmida da margem
do rio. Outro golpe. Outro. A terra feito areia atravessa o espaço,
volta ao rio, soterra um arbusto de melão-do-mato.
A
cada noite atravesso os caminhos, vejo a ruína da casa em que
reinavam os encantados. Deslizo, como uma semente encontrando a terra
arada, para o corpo de Bibiana. Retomo seu fôlego. Retorno ao mesmo
lugar onde vai surgindo um fojo. O lugar mais escuro de nossas
noites. A enxada desce sobre a cova, que ganha contornos definidos. A
terra pode ser uma armadilha. Vamos caçar um animal feroz que anda à
solta, apavorando a gente de Água Negra. A onça que sua avó via,
só ela via, e por isso pedia para terem cuidado. A onça era uma
lembrança daquele passado tão distante e havia retornado para
amedrontar os moradores. Não era a onça que havia protegido seu pai
louco no meio da mata. A onça que passamos a caçar havia derramado
sangue e estava disposta a rasgar a carne de mais gente, até
conseguir o que queria.
São
tantas noites cavando a terra para o fojo que as mãos de Bibiana
estão laceradas. Quando deixo seu corpo pela manhã, ela cuida das
palmas dormentes e castigadas com bolhas e feridas surgidas de nossa
guerra.
Então,
num dia qualquer, atravessei o terreiro e cheguei a Belonísia.
Estava sozinha como Miúda. Selvagem, conhecia a terra como ninguém.
Me uni ao seu corpo para vagar pela terra, para correr os marimbus,
atravessar cercas, pelos rios, por casas e árvores mortas. Seu nome
era coragem. Era da linhagem de Donana, a mulher que pariu no
canavial, que ergueu casa e roça com a força de seu corpo. A mulher
que sentiu as dores do parto e deitou em silêncio, mordendo os
lábios para parir mais um filho. A que enterrou dois maridos, e só
não enterrou o último por que o sangrou como se sangra uma caça.
Foi cavalgando seu corpo que senti que o passado nunca nos abandona.
Belonísia era a fúria que havia cruzado o tempo. Era filha da gente
forte que atravessou um oceano, que foi separada de sua terra, que
deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma vida nova e
iluminada. Gente que atravessou tudo suportando a crueldade que lhes
foi imposta.
Foi
na manhã fria, antes que o povo seguisse agasalhado para o trabalho,
que seu corpo ardeu como uma labareda. Sabia que a onça fazia sua
ronda pela estrada. Mas e se alguém a desafiasse e provocasse para
que ela adentrasse a mata? Para que caísse no fojo que construímos
com nossas mãos e com as forças dos ancestrais? E a sangrasse para
encontrar o sossego? Para afastar o medo que sua presença emanava? O
som do machado que nunca existiu desceu sobre a madeira. O som de um
arado arranhando a carne. Os sons que a boca de Belonísia não era
capaz de reproduzir, mas que, naquele instante, soaram forte como um
trovão.
Vejo
pelo interior de seus olhos.
A
onça caiu sobre a borda do fojo, sustentando o corpo com as garras
para não ser lançada em definitivo para o buraco. Assustou-se com a
armadilha escondida no meio da mata, coberta de taboa seca e palha de
buriti. Há quem jure que capatazes usaram as mesmas armadilhas de
caça para capturar escravos fugidos no passado. A onça caiu com as
presas enterradas no chão. Retirou uma porção de terra da boca.
Não, era uma armadilha tola para capturar uma caça. Mas, antes que
levantasse, se abateu sobre seu pescoço um único golpe carregado de
uma emoção violenta, que até então desconhecia.
Sobre
a terra há de viver sempre o mais forte.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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