Nem
só essa história se prolonga pelo plano metafísico. Quase todas
são pluridimensionais, carregadas de significado oculto. Todos os
rios do mundo de Guimarães Rosa têm três margens.
Os
temas da arte são fragmentos de vida, esses aspectos superficiais da
realidade que os nossos sentidos percebem. Mas “em volta de nós, o
que há, é a sombra mais fechada — coisas gerais”.
O
universo é, ao mesmo tempo, ordenado e caótico. Sua ordem,
inacessível à nossa percepção, pauta nossas existências,
preestabelecidas, imutáveis. Precisados de segurança, ansiamos por
alguma orientação e alguns pontos de apoio, e pelejamos “para
impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica”. Nesse
esforço inventamos as três faces do tempo: ora, a nossa duração é
indivisível e cada um dos instantes sucessivos que rotulamos de
presente contém todo o passado e todo o futuro. Ignorando-o,
agitamo-nos e procuramos reverter o tempo, livrar-nos do passado a
desviar o futuro, trocar de destino, iludir-nos com a ideia de optar,
quando apenas estamos trilhando a senda dos “futuros antanhos”.
Fazendo planos, tomando decisões, organizando a nossa vida, não
notamos que “algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da
gente...”. A unidade e o sentido dessa vida ficam-nos ocultos, pois
o seu desenho só se completa com a morte, também preexistente.
Visão
artisticamente fecunda, mas de profunda tragicidade, essa concepção
do mundo é suavizada pela importância que nela cabe ao amor, um
amor carnal “que gera o espiritual e nele se transforma”
(Benedito Nunes). Este é que nos traz os momentos de exaltação e
sublimação em que damos conta exatamente do nosso recado e melhor
nos igualamos ao rosto ideal que vivemos a buscar no espelho.
O
choque estilístico
O
leitor brasileiro que porventura entrar em contato com a arte de
Guimarães Rosa através de Primeiras estórias
inevitavelmente haverá de experimentar um choque, devido à
agressiva novidade do estilo, à qual os leitores antigos do autor se
vêm habituando progressivamente. (Falamos no leitor brasileiro,
porque o estrangeiro, que a conhecer através de tradução, terá
forçosamente sob os olhos um texto atenuado e filtrado, adaptado
pelo tradutor aos padrões existentes da língua acolhedora.)
Lembre-se
que o autor fez sua aparição na literatura como escritor
regionalista. Não adotara, porém, nenhuma das três técnicas à
disposição do regionalismo: servir-se da linguagem regional
indistintamente em todo o livro, restringi-la à fala das
personagens, ou substituí-la integralmente por uma linguagem
literária, convencional. A quarta solução, adotada por ele,
consistia em deixar as formas, rodeios e processos da língua popular
infiltrarem o estilo expositivo e as da língua elaborada embeberem a
linguagem dos figurantes. Disse língua elaborada e não
culta: Guimarães Rosa, conhecedor dos mais profundos do
idioma, não se satisfaz em explorar-lhe todo o tesouro registrado e
codificado, mas submete-o a uma experimentação incessante, para
testar-lhe a flexibilidade e a expressividade. Daí um estilo
personalíssimo, que das obras de caráter regionalístico se
alastrou por toda a obra de ficção do nosso autor, e até por suas
raras produções ensaísticas.
Fez,
em suma, Guimarães Rosa, em relação à linguagem, o que todos os
ficcionistas fazem da realidade, sua matéria-prima: desagregam-na e
reconstituem-na a seu bel-prazer, tratando as suas parcelas como
elementos de mosaico; com pedaços e traços de pessoas vivas
constroem as suas personagens; fundindo cenas e acontecimentos
registrados pela própria memória, deles tiram episódios e enredos.
Com clarividência notável, Antonio Candido define o mundo de
Guimarães Rosa como um universo autônomo “composto de realidades
expressionais e humanas que se articulam com harmonia, superando por
milagre o poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a
sua plataforma”.
Entre
os motivos dessa experimentação, do contínuo alargar do registro
da língua, figura, sem dúvida, o propósito de amoldá-la para
exprimir matizes e modalidades até então não observados da
realidade que aguardam denominação para penetrarem na consciência
comum. “O poeta se distingue como um aparelho altamente
discriminante da infinita multiplicidade de aspectos do ser”
(Oswaldino Marques). Mas o motivo principal, mais de uma vez
declarado pelo próprio ficcionista, consiste em dar “toque e
timbre novos às expressões amortecidas”. Como pertinentemente
observa Cavalcanti Proença, o nosso escritor outra coisa não faz
“senão apelar para a consciência etimológica do leitor,
neologizando vocábulos, reavivando-lhes o significado (obliterado ou
por demais esquecido pelo uso corrente), dando-lhes uma precisão que
esse mesmo uso acabou por destruir. Uma espécie daquele silêncio
que desperta os moleiros quando cessa o rolar do moinho.”
Nas
considerações seguintes, tenta-se não a catalogação dos recursos
estilísticos manejados no presente volume (e que daria outro
volume), e sim, apenas, a indicação exemplificada das tendências a
que correspondem. Não se ignora o risco deste trabalho: os espécimes
montados em alfinete com fins de coleção, rígidos e murchos, podem
parecer meras esquisitices e até monstruosidades, por mais que
vicejem e resplandeçam no contexto do seu ambiente natural,
vitalizando-o e animando-o.
Paulo Ronái, in Os vastos espaços, prefácio de Primeiras estórias, de Guimarães Rosa
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