terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Coisas gerais

Nem só essa história se prolonga pelo plano metafísico. Quase todas são pluridimensionais, carregadas de significado oculto. Todos os rios do mundo de Guimarães Rosa têm três margens.
Os temas da arte são fragmentos de vida, esses aspectos superficiais da realidade que os nossos sentidos percebem. Mas “em volta de nós, o que há, é a sombra mais fechada — coisas gerais”.
O universo é, ao mesmo tempo, ordenado e caótico. Sua ordem, inacessível à nossa percepção, pauta nossas existências, preestabelecidas, imutáveis. Precisados de segurança, ansiamos por alguma orientação e alguns pontos de apoio, e pelejamos “para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica”. Nesse esforço inventamos as três faces do tempo: ora, a nossa duração é indivisível e cada um dos instantes sucessivos que rotulamos de presente contém todo o passado e todo o futuro. Ignorando-o, agitamo-nos e procuramos reverter o tempo, livrar-nos do passado a desviar o futuro, trocar de destino, iludir-nos com a ideia de optar, quando apenas estamos trilhando a senda dos “futuros antanhos”. Fazendo planos, tomando decisões, organizando a nossa vida, não notamos que “algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente...”. A unidade e o sentido dessa vida ficam-nos ocultos, pois o seu desenho só se completa com a morte, também preexistente.
Visão artisticamente fecunda, mas de profunda tragicidade, essa concepção do mundo é suavizada pela importância que nela cabe ao amor, um amor carnal “que gera o espiritual e nele se transforma” (Benedito Nunes). Este é que nos traz os momentos de exaltação e sublimação em que damos conta exatamente do nosso recado e melhor nos igualamos ao rosto ideal que vivemos a buscar no espelho.

O choque estilístico

O leitor brasileiro que porventura entrar em contato com a arte de Guimarães Rosa através de Primeiras estórias inevitavelmente haverá de experimentar um choque, devido à agressiva novidade do estilo, à qual os leitores antigos do autor se vêm habituando progressivamente. (Falamos no leitor brasileiro, porque o estrangeiro, que a conhecer através de tradução, terá forçosamente sob os olhos um texto atenuado e filtrado, adaptado pelo tradutor aos padrões existentes da língua acolhedora.)
Lembre-se que o autor fez sua aparição na literatura como escritor regionalista. Não adotara, porém, nenhuma das três técnicas à disposição do regionalismo: servir-se da linguagem regional indistintamente em todo o livro, restringi-la à fala das personagens, ou substituí-la integralmente por uma linguagem literária, convencional. A quarta solução, adotada por ele, consistia em deixar as formas, rodeios e processos da língua popular infiltrarem o estilo expositivo e as da língua elaborada embeberem a linguagem dos figurantes. Disse língua elaborada e não culta: Guimarães Rosa, conhecedor dos mais profundos do idioma, não se satisfaz em explorar-lhe todo o tesouro registrado e codificado, mas submete-o a uma experimentação incessante, para testar-lhe a flexibilidade e a expressividade. Daí um estilo personalíssimo, que das obras de caráter regionalístico se alastrou por toda a obra de ficção do nosso autor, e até por suas raras produções ensaísticas.
Fez, em suma, Guimarães Rosa, em relação à linguagem, o que todos os ficcionistas fazem da realidade, sua matéria-prima: desagregam-na e reconstituem-na a seu bel-prazer, tratando as suas parcelas como elementos de mosaico; com pedaços e traços de pessoas vivas constroem as suas personagens; fundindo cenas e acontecimentos registrados pela própria memória, deles tiram episódios e enredos. Com clarividência notável, Antonio Candido define o mundo de Guimarães Rosa como um universo autônomo “composto de realidades expressionais e humanas que se articulam com harmonia, superando por milagre o poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma”.
Entre os motivos dessa experimentação, do contínuo alargar do registro da língua, figura, sem dúvida, o propósito de amoldá-la para exprimir matizes e modalidades até então não observados da realidade que aguardam denominação para penetrarem na consciência comum. “O poeta se distingue como um aparelho altamente discriminante da infinita multiplicidade de aspectos do ser” (Oswaldino Marques). Mas o motivo principal, mais de uma vez declarado pelo próprio ficcionista, consiste em dar “toque e timbre novos às expressões amortecidas”. Como pertinentemente observa Cavalcanti Proença, o nosso escritor outra coisa não faz “senão apelar para a consciência etimológica do leitor, neologizando vocábulos, reavivando-lhes o significado (obliterado ou por demais esquecido pelo uso corrente), dando-lhes uma precisão que esse mesmo uso acabou por destruir. Uma espécie daquele silêncio que desperta os moleiros quando cessa o rolar do moinho.”
Nas considerações seguintes, tenta-se não a catalogação dos recursos estilísticos manejados no presente volume (e que daria outro volume), e sim, apenas, a indicação exemplificada das tendências a que correspondem. Não se ignora o risco deste trabalho: os espécimes montados em alfinete com fins de coleção, rígidos e murchos, podem parecer meras esquisitices e até monstruosidades, por mais que vicejem e resplandeçam no contexto do seu ambiente natural, vitalizando-o e animando-o.

Paulo Ronái, in Os vastos espaços, prefácio de Primeiras estórias, de Guimarães Rosa

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