terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Red controla a mesa, para evitar pensar

No Filamento 622 C19 Beijing, ela, desconfortável em suas vestes de seda (mas canalizando Blue), inicia um debate sobre a construção de um canal que vira um debate sobre a moral pública, que incita um burocrata de princípios, incorruptível, chamado Lin, a aceitar um desafio Imperial. Se Lin acabar com os traficantes de drogas estrangeiros em Guangzhou, terá financiamento para seu projeto de infraestrutura. Quando Lin chega a Guangzhou e tenta acabar com o tráfico de drogas, uma guerra começa, e Red foge.
Na Axum do século XIV, islamizada e forte no Filamento 3329, Red, disfarçada, apunhala um homem que está prestes a apunhalar outro homem a caminho de casa eletrizado de café espresso, açúcar e matemática. O homem que Red apunhala morre. O matemático acorda no outro dia e inventa uma forma de pensamento que, em outro filamento, muito tempo depois, será chamada de geometria hiperbólica. Red já se foi.
No século IX, em al-Andaluz, ela serve o chá certo no momento certo. Na cidade de diamante de Zanj, ela estrangula um homem com uma corda de seda. Ela semeia o Filamento 9 Bacia Amazônica com versões inofensivas de superinsetos europeus dez séculos antes do primeiro contato, e quando os conquistadores chegam, precisam encarar milhões da população local, fortes, comunidades prósperas que não vão perecer pelo mero contato com o mundo do outro lado das ondas. Ela mata de novo e de novo, com frequência para salvar, mas não sempre.
E ela presta muita atenção.
Uma sombra a persegue. Ela não tem provas, mas sabe, como ossos sabem sob qual pressão se quebram.
A Comandante deve suspeitar. Uma queda em sua eficiência apontaria que ela foi comprometida. Então Red se esforça em suas tarefas: pega missões mais arriscadas do que a Comandante solicitaria, obtém belos sucessos, brutais. De novo e de novo, vazia, ela vence.
Ela se move fio acima e abaixo; ela trança e destrança o cabelo da história.
Red raramente adormece, mas quando dorme, ela deita imóvel, olhos fechados no escuro, e se deixa ver lápis-lazúlis, sentir o gosto de pétalas de íris e gelo, ouvir o canto de um gaio-azul. Ela coleciona azuis e os guarda.
Quando tem certeza de que ninguém está olhando, relê as cartas que entalhou em si mesma.
Toda essa correria e assassinatos mal passam o tempo. Ela espera e espera. Pela guilhotina: está encurralada, a pessoa por quem espera deu à Comandante a carta que ela deixou para trás, e a Comandante está só brincando com ela agora, deixando Red se acabar de trabalhar até que o Oráculo do Caos indique que ela tem mais valor destruída.
Querida Cochonilha…
Ou: Blue (ela se deixa pensar nesse nome uma vez a cada mês de duas luas) leu sua carta e se retraiu. Red escreveu rápido demais. Sua caneta tinha um coração dentro, e a ponta era uma ferida em uma veia. Ela manchou a página consigo mesma. Às vezes esquece o que escreveu, salvo que era verdade, e que escrever doeu. Mas asas de borboleta se quebram quando tocadas. Red sabe das próprias fraquezas como ninguém. Ela aperta demais, quebra o que deveria abraçar, rasga tudo que leva aos dentes.
Ela sonha com uma borboleta morpho com asas abertas do tamanho do mundo.
Ela esgana, torce, constrói. Ela trabalha.
Ela observa os pássaros.
Há tantos malditos pássaros. Nunca reparou neles antes; os conhecimentos sobre eles (de quem é esse canto, qual é o macho e qual é a fêmea, qual é o nome do pato com cabeça esmeralda) estão todos armazenados no índice, mas quando precisou consultá-los? Ela planejava usar um dia; ela planeja usar tudo um dia.
Mas agora aprende os nomes em livros. Pega alguns do índice para poupar tempo e porque livros são pesados, mas não deixa o conhecimento na nuvem. Ela repete os nomes para si mesma; grava padrões em seus olhos.
Ela queima três astronautas em suas cabines em uma plataforma de lançamento. Toda causa requer sacrifícios. O fedor de carne de porco chamuscada e borracha queimada se impregna em seus pulmões, e ela foge fio acima, e não deixa que ninguém a veja chorar. Red desmorona na margem do rio Ohio, se inclina e vomita em um arbusto, rasteja para longe e chora pela borracha e pelos gritos. Ela tira a roupa. Entra na água até que cubra sua cabeça. Um bando de gansos canadenses surge ao norte e pinta o céu de verde-escuro com o chiar de suas asas.
Ela para o ar borbulhando de sua boca.
Os gansos se acomodam no rio. Suas patas batem na água. Eles ficam por meia hora e levantam voo em um trovão de penas.
Ela emerge.
Um ganso espera na costa, por ela.
Red se ajoelha.
Ele deita a cabeça em seu ombro.
Depois vai embora, e duas penas ficam.
Red as aperta por um longo tempo antes de ler.
Mais tarde, mais ao sul, um corujão-orelhudo pega o ganso, e a rastreadora, chorando, come seu coração.
Quando Red entra na clareira, restam somente pegadas e o ganso despedaçado.

Amal El-Mohtar e Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo

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