A
sra. Snowden esperou que a minha avó e eu entrássemos no carro
elétrico dela. Era igual a qualquer outro carro, salvo pelo fato de
que era muito alto e curto, como um carro de desenho animado quando
bate numa parede. Um carro de cabelo em pé. Mamie se sentou no banco
da frente e eu no de trás.
Era
como unhas arranhando um quadro-negro. As janelas estavam cobertas de
uma camada de poeira amarela. As paredes e os bancos eram de veludo
bolorento e empoeirado. Marrom-escuro. Eu roía muito as unhas nessa
época, e a sensação do veludo mofado e poeirento nas pontas em
carne viva dos meus dedos, nos meus cotovelos e joelhos esfolados
era… uma agonia. Meus dentes doíam, meu cabelo doía. Eu
estremecia como se tivesse tocado acidentalmente num gato morto de
pelo duro. Dando um impulso, estiquei o corpo pra cima e me agarrei
aos pinos dourados em forma de vasos de planta que ficavam em cima
das janelas sujas. As alças que serviam para o passageiro se segurar
estavam podres e desfiadas, balançando feito perucas velhas embaixo
dos vasos de planta. Agarrada desse jeito aos pinos, eu ficava
suspensa no ar, balançando acima dos bancos traseiros dos outros
carros, onde eu via bolsas de compras, bebês brincando com
cinzeiros, caixas de lenços de papel.
O
carro fazia um ruído tão baixo, feito um zumbido, que nem parecia
que estávamos saindo do lugar. Será que estávamos? A sra. Snowden
não passava, talvez não pudesse passar, de vinte e cinco
quilômetros por hora. Andávamos tão devagar que eu via as coisas
de um jeito que nunca tinha visto antes. Via tudo ao longo do tempo,
como se estivesse observando alguém dormir, a noite inteira. Um
homem na calçada decidiu entrar num café, mudou de ideia, foi
andando até a esquina, depois voltou e entrou, estendeu o guardanapo
no colo e fez uma cara de expectativa, tudo isso antes que nós
chegássemos ao fim do quarteirão.
Se
eu abaixasse a cabeça, fazendo dela um banco de balanço embaixo dos
meus braços pendurados, quando olhava para cima só o que eu via de
Mamie e da sra. Snowden, tão pequeninas, eram os chapéus de palha,
como se elas fossem apenas dois chapéus de palha pousados no painel.
Eu ria histericamente toda vez que fazia isso. Mamie virava para trás
e sorria como se não tivesse notado. Nós não estávamos nem no
centro ainda, nem na Plaza.
Ela
e a sra. Snowden estavam falando de amigas que tinham morrido ou que
estavam doentes ou que tinham perdido o marido. Concluíam tudo o que
diziam com uma citação da Bíblia.
“Bom,
eu acho que ela foi muito tola de…”
“Ah,
sim, misericórdia! E como foi. ‘Todavia, não o considereis como
inimigo, mas procurai corrigi-lo como irmão.’”
“Tessalonicenses
Três!”, disse Mamie. Era uma espécie de jogo.
Por
fim, eu não aguentei mais ficar pendurada nos vasos de planta e me
deitei no chão. Borracha mofada. Poeira. Mamie virou para trás e
sorriu. Misericórdia! A sra. Snowden parou o carro na beira da
calçada. Elas acharam que eu tinha caído. Bem mais tarde, horas
depois, fiquei com vontade de ir ao banheiro. Todos os banheiros
limpos ficavam do outro lado da rua, o lado esquerdo. A sra. Snowden
não podia fazer curvas à esquerda. Tivemos que fazer umas dez
curvas à direita e percorrer uns dez quarteirões de ruas de mão
única até chegar a um banheiro. Eu já tinha feito xixi na calça a
essa altura, mas não disse nada para elas. Tomei a água fria da
bica do posto Texaco. Levamos mais tempo ainda para voltar para o
lado direito, porque tivemos que retornar até o viaduto da Wyoming
Avenue.
Estava
seco no aeroporto, carros entrando e saindo da pista de cascalho.
Novelos de barrilha presos na cerca. Asfalto, metal, uma névoa
poeirenta de átomos dançantes que se refletia, ofuscante, das asas
e janelas dos aviões. Dentro dos carros à nossa volta, pessoas
comiam coisas melequentas. Melancias, romãs, bananas machucadas.
Garrafas de cerveja esguichavam nos tetos, espuma cascateava nas
laterais dos carros. Eu queria chupar uma laranja. Estou com fome,
choraminguei.
A
sra. Snowden tinha previsto isso. Sua mão enluvada me passou
biscoitos recheados embrulhados num lenço de papel sujo de talco. O
biscoito se expandiu na minha boca como flores japonesas, como um
travesseiro estourado. Eu engasguei e chorei. Mamie sorriu e me
passou um lenço de pano cheio de pó de sachê, depois sussurrou
para a sra. Snowden, que estava balançando a cabeça:
“Não
ligue… ela só está querendo chamar atenção.”
“Pois
o Senhor educa a quem ama.”
“João?”
“Hebreus,
Onze.”
Alguns
aviões decolaram e um pousou. Bem, é melhor tratarmos de voltar
para casa. Ela não enxergava tão bem à noite, com os faróis e
tudo o mais, então dirigiu mais devagar no caminho para casa,
mantendo distância dos carros estacionados no meio-fio. Todos os
motoristas de domingo estavam buzinando para nós. Eu me levantei do
banco, apoiei as duas mãos no vidro de trás e, sustentando o corpo
bem longe do veludo, fiquei vendo o colar de faróis emperrado atrás
de nós até o aeroporto.
“A
polícia!”, gritei. Uma luz vermelha, uma sirene. A sra. Snowden
ligou a seta e foi encostando lentamente para deixar o carro de
polícia passar, mas ele parou do nosso lado. Ela abaixou a janela
até o meio para ouvir o que o guarda tinha a dizer.
“Senhora,
os sinais estão ajustados para um fluxo de sessenta quilômetros por
hora. Além disso, a senhora está dirigindo no meio da estrada.”
“Sessenta
é rápido demais.”
“Se
a senhora não aumentar a velocidade, eu vou ser obrigado a
multá-la.”
“Eles
podem me contornar simplesmente.”
“Minha
querida, eles não ousariam!”
“Ora!”
Ela
acionou a janela elétrica na cara do guarda. Ele bateu na janela com
o punho fechado, o rosto vermelho. Buzinas baliam atrás de nós, e
as pessoas do carro logo atrás do nosso estavam rindo. Furioso, o
guarda saiu pisando firme e entrou no carro de patrulha. Engatou a
marcha e arrancou, a sirene aos brados enquanto ele ultrapassava um
sinal vermelho, batia na traseira bronzeada de um Oldsmobile e depois
batia de novo, na dianteira de uma picape. Vidros se estilhaçaram. A
sra. Snowden abaixou sua janela. Seguiu adiante, contornando com
cuidado a traseira da picape arrebentada.
“Aquele
que julga estar em pé tome cuidado para não cair.”
“Coríntios!”,
disse Mamie.
Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos
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