quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Carpe diem


A maior parte do tempo eu não me importo de envelhecer. Algumas coisas me causam uma pontinha de dor, como os patinadores. Como eles parecem livres, deslizando com suas pernas compridas, os cabelos tremulando atrás. Outras coisas me causam pânico, como as portas dos trens da área da baía de San Francisco. Aquela longa espera antes que as portas se abram, depois que o trem para. Não é muito longa, mas é longa demais. Não há tempo.
E as lavanderias. Mas elas já eram um problema mesmo quando eu era jovem. Demoram demais, mesmo as Speed Queens. Dá tempo de a sua vida inteira passar diante dos seus olhos enquanto você fica lá, se afogando. Claro que, se tivesse carro, eu poderia ir à loja de ferragens ou ao correio e depois voltar para botar as roupas na secadora.
As lavanderias que não têm atendentes são piores ainda. Aí é que parece mesmo que eu sou sempre a única pessoa que fica lá. Mas todas as máquinas de lavar e de secar estão ocupadas… todo mundo foi para a loja de ferragens.
Foram tantos os atendentes de lavanderia que eu conheci, os Carontes de plantão, que trocam dinheiro ou que nunca têm troco. Agora é a gorda Ophelia, que pronuncia “Sem problema” como “Fem problema”. Ela quebrou a dentadura de cima mordendo um pedaço de charque. É tão peituda que tem que virar de lado e avançar em diagonal para conseguir passar pelas portas, como quem transporta uma mesa de cozinha. Quando vem andando pelo corredor com um esfregão, todo mundo se afasta e afasta os cestos também. Ela é uma saltadora de canais. Justo quando a gente acabou de se acomodar para ver The Newlywed Game, ela muda para Ryan’s Hope.
Uma vez, para ser educada, eu disse a ela que também andava tendo calores, então é a isso que ela me associa… à menopausa. “Como é que tá indo com os calorões?”, ela pergunta, alto, em vez de “Oi, tudo bem?”. O que só piora a situação, a coisa de ficar lá sentada, refletindo, envelhecendo. Meus filhos já estão todos crescidos agora, então eu passei de cinco máquinas de lavar para uma, mas uma demora tanto quanto cinco.
Eu me mudei na semana passada, talvez pela ducentésima vez na vida. Levei todos os meus lençóis, cortinas e toalhas para a lavanderia, empilhados até o alto no meu carrinho de compras. A lavanderia estava muito cheia; não havia máquinas de lavar vazias perto umas das outras. Pus todas as minhas coisas em três máquinas e fui trocar dinheiro com Ophelia. Voltei, pus as moedas e o sabão nas máquinas e as liguei. Só que eu tinha ligado três máquinas erradas. Três máquinas que haviam acabado de lavar as roupas de um sujeito.
Fui imprensada contra as máquinas. Ophelia e o sujeito pararam na minha frente, me olhando de cima. Sou uma mulher alta, uso meia-calça tamanho mãezona agora, mas os dois eram enormes. Ophelia estava com um spray de removedor de manchas na mão. O homem estava de bermuda jeans e tinha coxas imensas, cobertas de pelos ruivos. Sua barba cerrada nem parecia feita de pelos, parecia mais um protetor de para-choque vermelho. Ele usava um boné de beisebol com um gorila estampado. O boné não era pequeno, mas o cabelo dele era tão cheio que empurrava o boné bem lá para cima, no alto da cabeça, fazendo com que ele ficasse com uns dois metros e vinte de altura. Ele estava socando com um punho colossal a palma vermelha da outra mão. “Puta merda! Que merda!” Ophelia não parecia ameaçadora; ela estava me protegendo, pronta para se enfiar entre mim e ele, ou entre ele e as máquinas. Vivia dizendo que não havia problema na lavanderia que ela não soubesse resolver.
Moço, é melhor você sentar e relaxar. Não tem como fazer essas máquina parar depois que elas começa a trabalhar. Assiste um pouco de televisão, toma uma Pepsi.”
Botei moedas nas máquinas certas e as liguei. Então me lembrei que estava completamente dura, que não tinha mais sabão e que aquelas moedas que eu havia acabado de usar eram para as secadoras. Comecei a chorar.
Por que é que ela tá chorando, porra? O que você acha que isso fez com o meu sábado, sua retardada? Jesus Maria José.”
Eu me ofereci para botar as roupas dele nas secadoras, caso ele quisesse ir a algum lugar.
Eu não vou deixar você chegar nem perto das minhas roupas. Tipo, fica bem longe das minhas roupas, entendeu?” Não havia nenhum outro lugar para ele se sentar a não ser do meu lado. Ficamos olhando para as máquinas. Eu queria muito que ele fosse lá para fora, mas ele só ficou sentado ali, do meu lado. Sua imensa perna direita vibrava feito uma máquina de lavar quando está centrifugando. Seis luzinhas vermelhas cintilavam na nossa direção.
Você sempre faz merda desse jeito?”, ele perguntou.
Olha, eu lamento muito. Eu estava cansada. Eu estava com pressa.” Comecei a rir de nervoso.
Acredite você ou não, eu estou com pressa. Eu dirijo um guincho. Seis dias por semana. Doze horas por dia. E é isso. Este é o meu dia de folga.”
Você estava com pressa pra quê?” Eu perguntei com a intenção de ser gentil, mas ele achou que eu estava sendo sarcástica.
Sua cretina. Se você fosse homem, eu lavava você. Botava essa sua cabeça oca na secadora e deixava ligada até cozinhar.”
Eu disse que lamentava.”
Óbvio que você lamenta. O que é que uma anta feito você pode fazer além de se lamentar? Eu já tinha sacado que você era uma inútil antes de você fazer aquilo com as minhas roupas. Eu não acredito nisso. Ela está chorando de novo. Jesus Maria José.”
Ophelia se plantou na frente dele.
Para de azucrinar a paciência dela, tá ouvindo? Acontece que ela está passando por uma fase difícil, que eu sei.”
Como ela sabia disso? Fiquei impressionada. Ela sabe de tudo, essa sibila negra gigante, essa esfinge. Ah, ela deve estar se referindo à menopausa…
Eu posso dobrar as suas roupas, se você quiser”, eu disse para ele.
Fica quieta, garota”, disse Ophelia. “A questão é: que importância isso tem? Daqui a uns fem ano, quem é que vai ligar pra isso?”
Fem ano”, ele sussurrou. “Fem ano.”
Eu também estava pensando nisso. Cem anos. As nossas máquinas estavam sacudindo para valer, e todas as luzinhas vermelhas dos ciclos estavam acesas.
Pelo menos as suas roupas estão limpas. Eu gastei todo o sabão que eu tinha.”
Eu compro sabão pra você, cacete.”
Tarde demais. Mas obrigada assim mesmo.”
Ela não estragou o meu dia. Ela estragou a porra da minha semana inteira! Não tem sabão.”
Ophelia voltou e se abaixou para cochichar comigo.
Eu tô tendo um pouco de corrimento. O médico disse que, se não parar, eu vou precisar fazer uma curetagem. Você tem corrimento?”
Eu fiz que não.
Você vai ter. Os pobrema femininos não acaba nunca. É uma vida inteira de pobrema. Eu estou inchada. Você inchou?”
A cabeça dela tá inchada”, disse o homem. “Olha, eu vou até o carro pegar uma cerveja, mas eu quero que você prometa que não vai chegar perto das minhas máquinas. As suas são a trinta e quatro, a trinta e nove e a quarenta e três. Gravou?”
Gravei. Trinta e dois, quarenta, quarenta e dois.” Ele não achou graça.
As roupas estavam no último ciclo. Eu ia ter que pendurar as minhas para secar na cerca.
Quando recebesse meu pagamento, eu ia voltar com sabão.
A Jackie Onassis troca as roupa de cama dela todo santo dia”, disse Ophelia. “Isso pra mim já é doença.”
Com certeza”, concordei.
Deixei o homem botar as roupas dele num cesto e levá-las para as secadoras antes de tirar as minhas. Algumas pessoas estavam rindo, mas eu ignorei. Enchi meu carrinho com toalhas e lençóis encharcados. Ficou quase pesado demais para empurrar e, como as roupas estavam molhadas, nem tudo coube. Pendurei as cortinas rosa-choque no ombro. Do outro lado da lavanderia, pareceu que o homem iria dizer alguma coisa, depois desviou o rosto.
Levei um tempo enorme para chegar em casa. E mais tempo ainda para pendurar tudo, embora tenha conseguido encontrar uma corda. Uma neblina estava se aproximando.
Enchi uma caneca de café e me sentei na escada dos fundos. Estava feliz, calma, sem pressa nenhuma. Na próxima vez que pegar um trem, até ele parar eu não vou ficar me preocupando em descer. Quando for a hora, vou descer no momento exato.

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

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