Por
que você não pega o ônibus que passa na sua rua? Você conhece o
itinerário dele? Vá até o ponto final, para ver como é a cidade
que ele atravessa diariamente. Volte até o ponto inicial.
Por
que você não prepara uma viagem para conhecer a cidade em que seus
avós nasceram? E, se der, por que você não os leva? Por que você
não aprende a língua deles, caso sejam imigrantes estrangeiros?
Por
que você não vai conhecer aquele parente de quem ouviu muito falar,
mas que nunca viu pessoalmente?
Se
você tem empregada, por que não dá um beijo nela, assim que
levantar da cama? Por que não aceita aquele convite de conhecer a
casa dela? Marque a visita para o próximo domingo. E leve o vinho
mais caro que encontrar.
Por
que você não abraça o seu porteiro e combina de beber uma cerveja
depois do expediente com ele? Por que não vai conhecer a casa das
máquinas do seu prédio com o zelador? Por que não abre um
champanhe no teto do prédio, com ele? Veem o sol se pôr.
Se
você mora em casa, por que não pergunta para o vigia da sua rua
onde ele nasceu, como foi a sua infância, se é casado e tem filhos?
Por que não o convida para jantar antes do serviço? Cozinhe pra
ele. Como se cozinhasse para o rei.
Por
que você não liga agora para os seus pais e não diz o quanto os
ama? Por que não vai hoje à noite comer uma pizza com eles e
folhear álbuns de infância, reler cartas, ouvir histórias? Por que
você não abre o armário do seu pai e olha roupa por roupa, gaveta
por gaveta, como ele se veste atualmente? Por que você não dorme na
antiga caminha em que dormia?
Por
que você não faz as pazes com os seus irmãos? Convide todos para
irem ao circo. Pague pipoca para eles. Por que não vão todos depois
aos bastidores conversar com os trapezistas?
Por
que você não paga pipoca para todas as crianças do berçário
vizinho, que fazem uma algazarra incrível na hora do recreio? Por
que você não aproveita e brinca com elas? Por que você não pode
ou não quer?
Por
que você não visita a sua escola pré-primária? Ande pelos
corredores e tente reconhecer alguns professores. Por que você não
se senta no banco escolar de onde assistia as aulas? Por que você
não procura na biblioteca o seu nome nas fichas de livros que leu na
vida? Peça o mesmo sanduíche que comia na lanchonete da escola. Por
que não aproveita e paga para todos os alunos presentes uma rodada
de milk-shake? Lembra o quanto você era duro e de como era caro
tomar um?
Por
que você não liga já para a sua primeira namorada ou namorado e
marca um café? Marca para um sábado qualquer. Por que você não
liga para a segunda namorada ou namorado e relembra todas as
besteiras que fizeram, os apelidinhos que se deram, os presentes que
trocaram?
Por
que você não escreve uma carta? Por que você não compra selos e
posta a carta numa caixa de correio que resiste ao tempo? Você sabe
onde tem uma caixa de correio perto?
Por
que você não escreve uma carta para antigos namorados ou namoradas
relembrando todas as coisas boas que vocês viveram? Por que você
não escreve uma carta para você mesmo, contando todas as besteiras
que fez na vida, listando os arrependimentos? Coloque num envelope
selado, enfie na caixa de correio mais próxima.
Por
que você não começa hoje a ler o livro que sempre teve vontade,
mas que nunca teve tempo? E por que não decora a letra daquela
música que ama? Por que não aproveita e decora o número do seu
cartão de crédito novo?
Por
que você não vai a uma praça rolar na grama? O que o impede de
subir na gangorra ou balanço? E numa árvore? Siga as formigas.
Escute abelhas. Reparou que um adulto só volta a ser criança na
velhice?
Por
que é tão difícil quebrar os hábitos, fugir do padrão, deixar o
óbvio de lado? Por que ignorar o incomum? E, o pior de tudo, por que
a rotina nos é fundamental?
Por
que você não poda as árvores da sua quadra, por que não planta
flores nos canteiros da sua calçada, por que não adota um gato? Por
que você não passa o dia na janela, observando o movimento e a
rotina dos vizinhos? Falta de tempo? De interesse?
Por
que uma criança sempre ri?
Por
que não arrumar os livros em gênero, os discos em ordem alfabética,
as roupas por estilo? Por que não doar agora aqueles livros, discos
e roupas de que não gosta? Por que não passar o dia desenhando? Por
que não desenhar na parede da sala? E que tal comer um tomate
inteiro, como se fosse uma maçã? Ou sucrilhos, grão por grão?
Lamba o prato. Enfie o dedo no bolo. Use a colher do açucareiro,
para dispersar o açúcar no café.
Vá
ao estádio de futebol e se sente na arquibancada com a torcida
rival. Torça, um dia apenas, para um time que nunca imaginou que
existisse. O improvável é tão impossível assim?
Durma
olhando para as estrelas, coma sem usar os talheres, corra para ver
os cavalos acordarem, converse com os moradores de rua do bairro,
entre no metrô de costas, cante alto uma música no vagão, vá à
varanda mais próxima e uive com os cachorros na madrugada. Por que o
diferente amedronta?
Vá
ao aeroporto ver avião subir. Conte quantas nuvens tem agora no céu.
Tente desvendar qual animal elas lembram? Abra os braços, respire
fundo, feche os olhos, sinta no rosto a umidade da brisa, escute o
vento, a cidade viva. Diz: “Como é bom tudo isso...” Agora
repete.
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola
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