Nelsinho girou a chave na porta e
voltou-se para a moça, de pé no meio da sala:
– A família viajou.
Laura oscilava de leve. Deixando
escorregar a bolsa no braço, levou a mão aos olhos.
– A sala rodando.
Ele não apanhou a bolsa no tapete.
– Me segure, meu bem.
Sem dar um passo, estendeu a mão e a
bela veio conchegar-se no seu peito. Ergueu-lhe o queixo, observou o
rosto pálido, de olho cego – mordeu o lábio com beijo esfomeado.
Ao sentir-lhe o peso vacilante, conduziu-a ao sofá, onde ela se
deixou cair. Sacudia a cabeça no espaldar e, entre frases
desconexas, chamava um nome que Nelsinho não era.
– Por que judia de mim? – a voz
dengosa de menininha enjoadinha. – Sempre me tratou mal.
– Louco por você, minha flor. O herói
já sem paletó.
– Malvado! Gosta de me humilhar.
– Ora, que bobagem.
Com dificuldade despiu-lhe o casaquinho.
– Culpa minha não foi.
– Bem sei.
– Não. Você não perdoou.
Por que dois, ó Deus, para fazer o amor?
– Lá para dentro.
Sem que ela se erguesse, não lhe
baixaria a saia.
– Diga se gosta de mim.
– Você não vê? Quer ir ao meu
quarto? Ou de meus pais? Cama de casal.
– Será que não ...
Perdida nas nuvens da bebida, arregalou
os olhos:
– Aqui? No quarto de teus pais?
– Que é que tem? É profanação?
O Cristo enorme, todo azul, ocupava a
parede na largura da cama. Sentaram-se na colcha trabalhada de
crochê.
– Que beleza de colcha!
– Beleza teu seio, meu amor.
A beijá-lo em desespero, Nelsinho sentia
a língua engolida pela outra boca.
– Me deu o desprezo.
– O tipo era meu amigo.
– Nadir era o meu amor – e fungou no
seu ombro.
– Ele está morto. Agora tire a roupa.
Ela desabotoou a blusa de brilhante malha
negra.
– Apague a luz.
– Por quê?
– Porque sim.
No escuro, ele descerrou a porta – o
clarão do corredor invadiu o quarto. O herói arrancou a camisa. De
combinação, perna cruzada, Laura cabeceava, a mão no queixo.
– Tire essa roupa de uma vez.
Já tinha embolado a calça no tapete.
Ela se pôs de pé, desprendeu a saia. Aflito, Nelsinho a apanhou e
atirou longe.
– Não jogue no chão!
Ela recolheu a saia de seda, dobrou-a
sobre o mocho. Tirou a combinação. Tirou o sutiã.
– Tire tudo.
Tirou a calcinha, indecisa no meio do
quarto. Recuou até a faixa de luz – nua, duas vezes nua! Antes que
o herói desferisse voo, fechou a porta, deitou-se ao seu lado. Ele
estendeu a mão, alisava docemente o ombro. Correu os dedos
titilantes pelo seio: uma pera que, tão madura, oscilava ao peso do
biquinho.
– Ai, benzinho, você é mau.
– Quieta.
Entre gemidos balbuciava mil queixas.
– Não.
Ele suspendeu o gesto.
– Devagar, meu bem.
Tornou a babujar-lhe a orelha, o pescoço,
o ombro, devagar, devagarinho.
– De conta que sou o Nadir.
Debaixo dele o corpo sacudido de
tremores.
– Ó, não fale. Por amor de Deus. Não
fale no Nadir.
Para se distrair, Nelsinho evocava com
ranger de dentes as estrofes imortais de Casimiro de Abreu: Eu me
lembro! eu me lembro! – Era pequeno ... Terceira vez ao escandir o
verso – Que dura orquestra! Que furor insano!, ela deu um grito:
– Você me arrebenta!
Atropelou o verso, perdeu a consciência.
Voltou a si, a unha de leve na nuca.
– Num bem-estar danado. E eu me doendo
toda.
O moço ergueu os olhos para o quadro
azul na parede:
– Se o pobre Nadir nos visse...
Caiu a lâmina da guilhotina, espirrou
longe a cabeça, ainda falando de espanto:
– Que loucura é essa?
Tateou a nuca ferida, acendeu a lâmpada:
– Está doida, minha filha?
– Não. – E, olho fechado, a
mordiscar-lhe o queixo. – Estou é com sede.
O golpe assassino das unhas no pescoço.
Ele deu três pulos no tapete, a mão escondendo as vergonhas. Abriu
a gaveta do camiseiro, escolheu o pijama de bolinha do pai, vestiu a
calça: muito comprida, obrigado a enrolar a barra. Dirigiu-se à
cozinha, tornou com a garrafa de gim, uma jarra de água e cubos de
gelo. Laura envergava o casaco do pijama, todo abotoado. Com as duas
mãos unia as abas, muito à vontade na cama sacrossanta da família.
– Me achando bonita?
Gana de expulsá-la aos berros:
Cadelinha!
– Pintou o cabelo?
– Desde que ele morreu.
Sob o paletó, nua e oferecida, uma perna
dobrada.
– Ai, minha perdição é a falsa
loira. Cabelo oxigenado, sobrancelha bem preta!
Nelsinho serviu doses generosas, ela
acendeu dois cigarros. Estenderam-se sobre os quadrinhos de crochê,
obra de um ano inteiro das mãos diligentes da mãe.
– Que tal o Nadir? Melhor que eu?
– Não respeita os mortos? – De
repente abriu o casaco. – Que acha de mim?
Mãezinha do céu: dois suspiros
redondinhos com uma pitanga na ponta.
– Não há outra igual!
A cabeça da bela pesava-lhe duramente no
braço.
– Ele era melhor?
– Você é um colosso – Não morda, que
dói.
Alumbramento no fio baboso de voz:
– Ninguém dá nada por você...
Magrinho como é!
Agarrou o copo, bebeu até a última
gota. De voz rouca:
– Ele foi o primeiro amor!
Olhos sonhadores, evocava o bem-amado
perdido.
Nunca mais seria a mesma, tão outra que
até pintara o cabelo. Só usava blusa negra de seda – a mortalha
da viúva.
– É tarde para chorar.
– Estou em carne viva.
– Não exagere, meu bem.
Queria bancar a virgem – o que nunca
havia sido. Encolhia-se no canto da cama, enrolada na colcha.
– Que você tem?
– Com dor.
– Não se faça de santinha. Depois
dele, a quantos se entregou?
– Com o Nadir era diferente! Era
amor...
– Um colosso, não era?
Ofendida, sentou-se na cama, estendeu a
perna, repuxou a meia até a coxa luminosa de tão branca. Ele a
agarrou. Com fúria defendeu-se, ó viúva inconsolável, carpideira
da eterna saudade.
– Não quero. Por favor. Agora não.
Mais tarde deixou que ela se vestisse.
Acendeu as luzes, olhou em volta. Ufano, um herói pintado de ouro: o
quarto era campo de batalha. O cadáver sangrava de suas feridas sem
manchar os lençóis.
– Poxa, sou mais homem do que meu
pai.
Dalton Trevisan, in O vampiro de Curitiba
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