sábado, 9 de outubro de 2021

A triste história do homem que cozinhava melhor do que devia


Não era, definitivamente, um homem de se jogar fora. Trinta e alguns, peitoral definido, concursado, cabelo jogadinho. O típico homem que, se ficou disponível para casar até então, deixa a pulga atrás da orelha.
Saía com muitas mulheres. Buscava em casa, pagava a conta, dizia falsamente que deixaria que elas pagassem a próxima. Vestia-se bem, de modo geral. As camisas eram meio justas no tal peitoral definido, o que não transmitia um ar muito inteligente, mas a situação melhorava quando ele começava a falar sobre história do rock, que aprendera com a mãe, e cultivo de orquídeas, paixão do finado avô paterno.
Corria o boato de que tinha um beijo fantástico. Sem muita baba, sem muita pressa. Os dentes, aliás, eram um primor; grandes, harmônicos e luminosos. Assim como seu carro, grande, cheio de luzes e perfeitamente adequado ao seu jeito imponente. Grande também era uma outra coisa, para afastar dúvidas quanto a este assunto de inegável importância.
Talvez o fato de nenhuma mulher sossegar ao seu lado se devesse a um mau gênio, já que o sorriso de comercial evidenciava que por mau hálito não seria. Não era. Ficamos sabendo que era sossegado, sem surtos de ciúmes, nem chiliques por pequenos atrasos, tampouco aversão a lugares cheios de gente.
O que, então, poderia deixar aquele homem fantástico na eterna busca por uma companheira?
A resposta não estava na cara, nem na mente, nem na cama, nem no coração. Estava naquelas duas mãos com uma assombrosa vocação para a cozinha. E ele adorava o dom recebido, não se sabe bem se por acaso ou por herança genética (já que seu tio era conhecido em Lindoia como o Rodrigues Panela de Ouro).
Sabendo-se um cozinheiro encantado, não tardava a convocar a moça da vez para jantar em sua casa. Eram massas, carnes, peixes, risotos e doces de tirar o fôlego, regados com vinho escolhido por quem era íntimo das uvas.
Esse jantar, na concepção dele, era o auge. A cartada final. Overdose de qualidades que resultaria em arrebatadora paixão. Era exatamente aí que se enganava.
As moças chegavam. Deslumbramento certo ao ver aquele homem com pano de prato no ombro controlando o ponto do risoto enquanto preocupava-se em colocar mais vinho no copo da visita. Ao mesmo tempo que ralava o Parmigiano-Reggiano, falava sobre sua dor adolescente na morte de Kurt Cobain.
Tudo ia muito mais do que bem.
Até que se sentavam à mesa. Ele servia o prato da moça (às vezes bem moça, outras nem tão moça). A primeira garfada era como uma viagem. Elas saíam dali. Da mesa à meia-luz, do apartamento moderninho, do bairro nobre, da cidade caótica, do país em desenvolvimento, do planeta ameaçado. Iam sabe Deus até onde.
Era realmente inexplicável. O sabor de cada garfada era assombrosamente bom. Elas não conseguiam parar, não conseguiam olhar para ele, não conseguiam continuar a conversa. Mais do que talento, parecia bruxaria.
Os pratos ficavam limpos, sem uma cebolinha para contar história. Todas iam até o final: a mais magrinha, a mais enjoada, a que fazia dieta Dukan, a que estava com a garganta inflamada. Terminavam tão desnorteadas como quando haviam começado.
Ele tirava os pratos. Impecável. Levava-as para a varanda com as taças cheias mais uma vez. Tirava a mecha de cabelo da frente do rosto delas, deslizava a mão até a nuca. Beijava-as. Normalmente ao som de “Everything”, do Michael Bublé. Era o golpe da morte. Dele.
Depois daquele jantar, daqueles temperos, daquela viagem… aquele beijo. Aquele beijo que se tornava tão pequeno. Sem sabor, sem emoção. Aquele homem, que era lindo, comparado com a lembrança daquele prato, era tão pouco. Tão oco. O toque das suas mãos já não fazia sentido. Seu sorriso, seus dentes claros. Nada.
Elas abaixavam a cabeça e sorriam falsamente para as tábuas de madeira. Sempre igual. O clima acabava ali. E as histórias, alguns minutos depois.
Dizem que até hoje ele não entendeu e segue mais vítima das próprias mãos do que qualquer suicida por aí.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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