Hoje acordei normal, como antes de fazer
treze anos.
Fui cedo catar coisas no lixo, cavucar
abacaxis apodrecidos,
atrás de um veio são, como quem cata
ouro.
Que tem isso tudo a ver com santidade?
Mas se não tiver me morro,
porque não entendo outro ar menos grosso
que este onde meu nariz se apoia.
Os santos me chamam com assobios
vertiginosos,
se penso que vou é porque é maior meu
olho que a barriga;
dou um passo de medroso, outro de
temerário.
Com dois passos e meio fico doido e
começo a voltar.
Sei o que não é para mim. O que é meu
não sei direito ainda.
Uma vez, quando eu tinha quatro anos,
achei um caco de vidro no monturo.
Lavei, enxuguei, guardei bem guardado
e fui comer com vontade, ficar obediente,
emprestar minhas coisas,
por causa do caco, porque tinha ele,
porque eu podia
quando quisesse pôr ele contra o sol e
aproveitar o seu reflexo.
Ele era laranjado chitadinho de branco.
Assim eu sei,
se assim puder, farei. Cada qual é
diverso, descobri.
Por isso e porque está escrito
que o Espírito de Deus nos toma sem
matar-nos
é que eu digo como quem reza: Sô
Antônio Vítor morreu.
A tarde do seu enterro foi um largo
tranquilo de se dizer:
hoje está tudo como antigamente era bom.
Os cereais somam seus cheiros — ó que
perfume doce —
com rapadura e querosene — ó que
armazéns humanos.
Os mosquitos como pessoas da casa
admitidos.
A poeira também.
Quando eu fico normal o reino do céu não
dá os sobressaltos,
dá só gosto e alegria.
Adélia Prado
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