terça-feira, 24 de agosto de 2021

Questão de idade

Perdão, cavalheiro. O senhor não pode.
Não posso por quê? Tá aqui a entrada que eu comprei.
O filme é proibido para setenta e cinco anos, não viu na bilheteria?
Vi. Eu tenho setenta e seis.
Então me mostre a carteira de identidade, por gentileza.
A carteira de identidade está na minha cara.
Ah, é? Parece ter cinquenta e cinco, sessenta no mais tardar. Infelizmente não pode.
Este bom aspecto que o senhor achou em mim — aliás, eu lhe agradeço, viu? — é porque eu me cuido: ioga, meditação transcendental, cooper, macrobiótica.
Tá bom, mas sem documento não insista.
Espere aí, me deixe argumentar.
O gerente aproxima-se:
Que que há?
É esse jovem aí que quer entrar e não tem idade suficiente.
Jovem? O senhor me chamou de jovem? Agora está debochando de mim?
Não senhor. Se o cara não tem condição de ver o filme, eu chamo ele de jovem.
Cara! O chefe de seção aposentado de uma das mais importantes repartições federais, ser tratado de cara!
Meu amigo, calma. O rapaz está cumprindo com o dever. São ordens superiores. Compreenda a nossa posição. A frequência está baixando devido às últimas disposições sobre idade-limite. Já pensamos mesmo em transformar este estabelecimento em edifício-garagem.
E eu com isso?
Se o senhor entra, vem o fiscal e fecha o cinema por infração.
Melhor até. Facilita a mudança de ramo.
Não brinque com essas coisas. Colabore conosco. Inclusive a fila está aumentando, e o senhor bloqueou a entrada.
Se a fila aumenta, como é que diminui a frequência?
Este filme é dos raros, entende? Que ainda lotam a casa. Claro: proibido até setenta e cinco anos.
Por isso mesmo é que eu quero ver.
Mas se não atingiu a idade, se ainda não conquistou esse direito, como é que eu posso permitir essa… como direi, essa inconstitucionalidade? Seja razoável.
Seja razoável também. Sou uma pessoa respeitável, está para nascer quem tenha me visto mentir uma vez na vida. Completei setenta e seis anos em 15 de fevereiro, sou um homem de Aquário, e Aquário não é de embromar ninguém.
Acredito, mas e a carteira?
A carteira estava no carro, o carro saiu com meu neto, sei lá onde ele anda a esta hora.
A fila começa a impacientar-se. Pigarros. Tosses. Irritação sonora.
Entra ou sai logo!
Por que não deixam ele entrar? Será que veio nova portaria, proibindo até oitenta?
Aquele ali? Coitado, já passou da idade de frequentar cinema. Por isso é que foi barrado.
Só a gente criando uma associação de frequentadores de cinema, para garantir nossos direitos.
Garantir como? E quem garante a associação?
Esse velho está enchendo.
O gerente também.
Velho por quê? Quem é velho aqui? Eu não me considero velho. Velhice é estado de espírito.
Acaba com isso! Decide logo!
O gerente, nervoso:
Viu o que o senhor me arranjou? Essa turma de setenta e cinco, quando se chateia, é capaz de arrebentar o cinema. E eu não tenho nada com o peixe, eu cumpro determinações do alto, eu nem sequer posso entrar na sala de projeção, ainda não fiz quarenta! Nem eu nem o porteiro… Os vaga-lumes, um tem setenta e sete e o outro setenta e oito anos, por causa da proibição, o senhor sabia? Pelo amor de Deus, suma da minha presença!

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

Nenhum comentário:

Postar um comentário