segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Garrafas e carrancas

Aproxima-se o Natal. Cada Natal que passa nos aproxima do ano 2000. Para essa alegria futura, para essa paz de amanhã, para essa justiça universal, para esses sinos do ano 2000, nós os poetas desse tempo de agora temos lutado e cantado.
Lá pelos anos 30, Sócrates Aguirre, aquele homem sutil e excelente que foi meu chefe no consulado de Buenos Aires, pediu-me num 24 de dezembro que eu me fantasiasse de São Nicolau ou Papai Noel, em sua casa. Fiz muitas coisas mal em minha vida mas nada ficou tão mal quanto esse Papai Noel. Caíam os algodões do bigode e me enganei demais na distribuição dos brinquedos. E como disfarçar minha voz que a natureza do Sul do Chile tornou fanhosa, nasalada e inconfundível, desde a minha mais tenra idade? Recorri a um truque: me dirigi às crianças em inglês mas as crianças cravaram em mim vários pares de olhos negros e azuis e mostravam mais desconfiança da que convém a uma infância bem educada.
Quem diria que entre aquelas crianças estava a que seria uma de minhas amigas prediletas, escritora notável e autora de uma de minhas melhores biografias? Estou falando de Margarida Aguirre.

Em minha casa fui reunindo brinquedos pequenos e grandes, sem os quais não podia viver. A criança que não brinca não é criança. Mas o homem que não brinca perdeu para sempre a criança que vivia nele e que lhe fará muita falta. Edifiquei minha casa também como um brinquedo e brinco nela da manhã à noite.
São meus próprios brinquedos. Juntei-os através de toda a minha vida com o propósito de me entreter sozinho. Vou descrevê-los para as crianças pequenas e para as de todas as idades.
Tenho um barco veleiro dentro de uma garrafa. Para dizer a verdade, tenho mais de um. É uma verdadeira frota, com seus nomes escritos, seus mastros, suas velas, suas proas e suas âncoras. Alguns vêm de longe, de outros mares minúsculos. Um dos mais belos me foi mandado da Espanha em pagamento de direitos autorais de um livro de minhas Odes. No alto, no mastro maior, está nossa bandeira com sua solitária e pequena estrela. Mas quase todos os outros são feitos pelo senhor Carlos Hollander. O senhor Hollander é um velho marinheiro que reproduziu para mim muitos daqueles barcos famosos e majestosos que vinham de Hamburgo, de Salem ou da costa bretã para carregar salitre ou para caçar baleias pelos mares do sul.
Ao descer o longo caminho do Chile para encontrar, em Coronel, o velho marinheiro, entre o cheiro de carvão e chuva da cidade sulista, entro na verdade no menor estaleiro do mundo. Na salinha, na sala de jantar, na cozinha, no jardim, acumulavam-se e se alinhavam os elementos que serão colocados nas claras garrafas, das quais o pisco se foi. Dom Carlos toca com seu sopro mágico proas e velas, traquetes e gáveas. Até a menor fumaça do porto passa por suas mãos e se converte numa criação, em um novo barco engarrafado, completo e radiante, pronto para o mar quimérico.

Em minha coleção sobressaem, entre os outros barcos comprados em Amberes ou Marselha, os que saíram das modestas mãos do navegante de Coronel. Porque não só ele lhes deu vida como também os ilustrou com a sua sabedoria, colando-lhes uma etiqueta que conta o nome e o número das proezas do modelo, as viagens que manteve contra vento e maré, as mercadorias que distribuiu pelo Pacífico com seus velames que já não veremos mais.
Tenho barcos engarrafados tão famosos como a poderosa Potosí e a magna Prússia, de Hamburgo, que naufragou no Canal da Mancha em 1910. Mestre Hollander me deleitou também fazendo para mim duas versões da Maria Celeste que, desde 1882, se converteu em estrela, em mistério dos mistérios.
Não estou disposto a revelar o segredo navegatório que vive em sua própria transparência. Trata-se de como entraram os minúsculos barcos em suas garrafas ternas. Eu, enganador profissional, com o objetivo de mistificar, descrevi minuciosa-mente em uma ode o enorme e mínimo trabalho dos misteriosos construtores e contei como entravam e saíam das garrafas marinheiras. Mas o segredo continua.
Meus brinquedos maiores são as carrancas de proa. Como muitas coisas minhas, estas carrancas saíram retratadas nos jornais, nas revistas, e têm sido discutidas com benevolência ou com rancor. Os que as julgam com benevolência riem compreensivamente e dizem:
Que sujeito mais louco! O que lhe deu para colecionar!

Os malignos veem as coisas de outro modo. Um deles, amargado pelas minhas coleções e pela bandeira azul com um peixe branco que eu icei em minha casa de Isla Negra, disse:
Eu não ponho bandeira própria nem tenho carrancas.
O coitado chorava como um garoto que inveja o pião dos outros garotos. Enquanto isso, minhas carrancas marinhas sorriam, lisonjeadas pela inveja que despertavam.
Na verdade deveria se dizer carrancas de proa. São figuras com busto, estátuas marinhas, efígies do oceano perdido. O homem, ao construir suas naves, quis elevar suas proas com um sentido superior. Colocou antigamente nos navios figuras de aves, pássaros totémicos, animais míticos talhados em madeira. Depois, no século XIX, os barcos baleeiros esculpiram figuras de caráter simbólico: deusas seminuas ou matronas republicanas de gorro frígio.
Tenho carrancas e mais carrancas. A menor e mais deliciosa, que muitas vezes Salvador Allende tentou me arrebatar, chama-se Maria Celeste. Pertenceu a um navio francês, de tamanho menor, e provavelmente não navegou senão nas águas do Sena. De cor escura, esculpida em madeira de azinheira, com tantos anos e viagens virou morena para sempre. É uma mulher pequena que parece voar com os sinais do vento talhando suas belas vestes do Segundo Império. Acima das covinhas das faces, os olhos de louça olham o horizonte. E, ainda que pareça estranho, estes olhos choram durante o inverno, todos os anos. Não há explicação para isso. A madeira tostada terá talvez alguma impregnação que recolhe a umidade. Mas o certo é que esses olhos franceses choram no inverno e que eu vejo todos os anos as preciosas lágrimas descerem pelo pequeno rosto de Maria Celeste.
Talvez seja religioso o sentimento despertado no ser humano diante das imagens, sejam cristãs ou pagãs. Outra de minhas carrancas de proa esteve alguns anos onde lhe convinha: diante do mar, em sua posição oblíqua, tal como navegava no navio. Mas Matilde e eu descobrimos certa tarde que, saltando a cerca como costumam fazer os jornalistas que querem me entrevistar, algumas senhoras beatas de Isla Negra tinham se ajoelhado no jardim diante da carranca de proa iluminada por não poucas velas que tinham acendido para ela. Possivelmente havia nascido uma nova religião. Mas ainda que a carranca alta e solene parecesse muito com Gabriela Mistral, tivemos que desiludir as crentes para que não continuassem adorando com tanta inocência uma imagem de mulher marinha que tinha viajado pelos mares mais pecaminosos de nosso pecaminoso planeta.
Desde então a tirei do jardim, estando agora mais perto de mim, junto da lareira.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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