A agressividade de Tobias cresceu nos
meses que se seguiram, a ponto de minha mãe fazer chegar a mim um
recado de meu pai: estava preocupado comigo e queria que voltasse
para casa. Não seria vergonha alguma para a família meu retorno.
Apenas queria zelar por sua filha para que nada de ruim acontecesse.
Tobias reclamava por pouca coisa, e quase
sempre a culpa de tudo estava em mim. Bebia grande quantidade de
cachaça, seus olhos ficavam vermelhos e pousavam no meu corpo quase
sempre para acompanhar os insultos que me dirigia: lembrar que era
muda, que passado tanto tempo não havia gerado filho como minha
irmã, que não cozinhava bem, que perdia muito tempo arando o
quintal, que não queria me ver na companhia de Maria Cabocla. Ela,
por sua vez, me dizia que era certo que o problema de não criar
menino na barriga não era meu, porque Tobias deitava antes com uma e
com outra mulher, mas não se tinha notícia de filho algum.
“Decerto”, me disse, “ele é que deve ter a gala rala”.
Não foram poucos os dias em que pensei
em retornar à casa de meu pai. Mas algo me dizia que poderia dobrar
o homem. Não deveria deixar a casa, acovardada. Se havia coisa que
aprendi era que não deveria aceitar a proteção de ninguém. Se eu
mesma não o fizesse, ninguém mais poderia. O cuidado que Bibiana
direcionava a mim, no passado, nada mais era que o desejo que ela
mesma alimentou desde muito cedo de que poderia salvar a todos,
talvez influenciada pela experiência de crença de nosso pai. Mas,
no fundo, era eu quem a protegia quando demonstrava medo nas
atividades mais corriqueiras, quando precisávamos avançar na mata
ou nos rios ou marimbus, me fazendo seguir na frente para, caso
avistasse uma cobra ou um animal selvagem, espantar com o que dizia
ser minha valentia.
Durante um tempo, Tobias ainda temeu meu
pai enquanto frequentava as noites de jarê. Bebia, falava alto,
chamava atenção dos presentes. Mas não era o único a exagerar,
por isso ninguém dava muita importância. Era um momento de
descontração da faina levada ao extremo dia a dia. Mas eu, que já
o via falar alto quase todo dia por conta da bebida, não suportava
nem olhar ou escutar sua voz, nem mesmo ficar ao seu lado quando
saíamos. Preferia procurar outras companhias, ajudar minha mãe nos
afazeres, ficar com Domingas ou com as filhas de Tonha.
Foi mais ou menos naquele período que me
veio um forte sentimento de culpa por ter aceitado viver com Tobias.
Ele nunca havia feito perversidade como o marido de Maria Cabocla e
de tantas outras que faziam das mulheres saco de pancada. Somente uma
vez havia ameaçado me bater, quando me fez procurar uma calça puída
que havia costurado dias antes para que vestisse. Gritou com seu
jeito grosseiro, e eu, me sentindo ofendida, não arredei o pé da
cadeira onde costurava uma toalha. Ele levantou a mão como se fosse
dar um tapa e a susteve no ar quando interrompi a costura para mirar
com olhos ferozes os seus olhos. Como se o desafiasse a fazer o que
ele queria, para ver se sua bravura ultrapassaria minha determinação.
Senti um bicho ruim me roendo por dentro naquele instante e talvez
tenha visto a fúria que guardava. Tobias abaixou a mão e parou de
falar, envergonhado, e saiu para beber mais. Quando retornou,
cambaleando, deitou na cama ainda sujo e dormiu.
Pensava que seria melhor se tivesse
morrido no dia em que saí de casa. Que poderia ter despencado do
cavalo e me estrebuchado no chão sem forças, porque àquela altura
minha lamentação não servia de nada. Sabia que mesmo depois de
muitos anos, carregaria aquela vergonha por ter sido ingênua, por
ter me deixado encantar por suas cortesias, lábia que não era
diferente da de muitos homens que levavam mulheres da casa de seus
pais para lhes servirem de escravas. Para depois infernizarem seus
dias, baterem até tirar sangue ou a vida, deixando rastro de ódio
em seus corpos. Para reclamarem da comida, da limpeza, dos filhos mal
criados, do tempo, da casa de paredes que se desfaziam. Para nos
apresentarem ao inferno que pode ser a vida de uma mulher.
A vida bem sucedida de meu pai e minha
mãe, ou até o momento de Bibiana e Severo, parecia ser uma exceção.
Sofriam algumas penitências, nenhuma mulher estava livre delas, mas
eram respeitadas, tinham voz dentro de casa. Nunca havia visto meu
pai dirigir qualquer insulto à minha mãe. Se não eram calorosos e
afetuosos entre si, também não eram indiferentes. Cada um sabia da
necessidade do outro e concordava em ceder para avançar. Apesar de
pouco tempo, conseguia ver que comigo não seria do mesmo jeito.
Poderia até piorar, a ponto de Tobias me destinar os mesmos
maus-tratos que Aparecido dava a Maria Cabocla.
Sem justificativas, Tobias passou a ficar
mais tempo fora de casa. Deixou de ir ao jarê de meu pai e começou
a frequentar outro, a léguas de distância. Quando não era o jarê
eram as festas de santo, ou os aniversários e batizados da gente que
conhecia. Continuava a chegar bêbado, com as roupas sujas, com todos
os tipos de mancha, de barro a pintura de mulher. Foram muitos os
dias que dormiu fora de casa. No início, me preocupava com seu jeito
explosivo e possíveis brigas e juras de vingança que poderiam
recair sobre ele. Me preocupava também que Sutério, vendo correr
sua fama, o convidasse a se retirar da fazenda. Já havia decidido
que, caso isso ocorresse, não iria embora do lugar em que nasci.
Senti meu corpo esfriar muitas vezes e, a
cada ausência de Tobias, rezava por mim mesma, para que tivesse
forças para suportar aquela vida. Continuei a trabalhar no quintal,
cuidando da roça e das coisas que ele não fazia mais. Só não
montava animal como um vaqueiro porque isso não sabia.
Passadas semanas, depois de uma noite mal
dormida, sem eu saber por onde andava Tobias, Genivaldo, vaqueiro da
fazenda, chegou à porta de nossa casa com o chapéu na mão.
Silencioso, o mau presságio a ponto de arrebentar em seu rosto.
Parecia uma ave de mau agouro, e senti meu corpo se arrepiar por
inteiro. Me convidou a acompanhá-lo pela estrada para o lugar onde
encontrou o homem que havia me tirado de casa, caído.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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