terça-feira, 23 de março de 2021

Como nascem os filmes

          Um filme é uma criatura muito especial, muito específica, nascida das mesmas vontades antigas que levaram nossos antepassados a narrar uma caçada ao mamute nas paredes das cavernas de Lascaux ou criar miniaturas com cenas das vidas dos santos. Num filme está um impulso ao mesmo tempo mais primitivo que o da leitura e mais tecnologicamente sofisticado que o do teatro. Como na leitura, queremos narrativas que alimentem nossa imaginação — mas diferentemente do livro, onde mundos interiores, paisagens distantes, estados de espírito e intenções ocultas podem ser descritos, deixando que nossa imaginação preencha o vácuo, o filme tem a obrigação de nos mostrar, ou pelo menos balizar visualmente cada uma dessas coisas. Como no teatro, ele propõe a apreciação do movimento, da presença humana, da máscara do personagem — mas apenas com a intermediação da imagem captada, uma camada adicional de interferência, manipulação, irrealidade.
E assim, desse jeito tão peculiar, o cinema tem capturado nossa atenção, nossa imaginação, nosso tempo e nosso dinheiro há mais de um século.
Um filme é uma encruzilhada de elementos contraditórios. Exige ao mesmo tempo a mais alta tecnologia de imagem e som e o artesanato mais puro de corte, costura, bordado, maquiagem, escultura, carpintaria. Segue a visão de uma pessoa, o diretor, mas emprega os talentos de uma pequena multidão de indivíduos igualmente criativos. E — muito importante — equilibra-se no gume afiado entre arte e comércio.
Os tempos românticos de “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão” se foram. É claro que existe toda uma produção cinematográfica que pode se ater a esse princípio, assim como existe toda uma outra produção audiovisual cujo destino são galerias, museus e salas especiais. Mas não é de nenhuma das duas que falamos aqui. Falamos daquela que chega ao cinema da sua cidade, à sua locadora ou à sua TV. E, para essa, o contorcionismo entre criatividade e responsabilidade fiscal é o que está na base, na raiz. É a tensão entre dois polos que podem se aniquilar mutuamente ou gerar maravilhas.
As normas que hoje regem o mercado da produção cinematográfica mundial não são exatas e rígidas, mas, basicamente, a filosofia principal é: um filme, mesmo “barato”, é caro; antes de investir a pequena fortuna necessária para que ele se torne realidade, há que se tentar ao máximo minimizar os riscos. E esse processo interessa de perto a nós, os espectadores, porque são as decisões tomadas durante essa tentativa de minimizar os riscos que, em última análise, determinam a forma final que um filme terá, se ele será ousado ou conservador, autoral ou formulaico, luxuoso ou cru, cheio de estrelas ou repleto de desconhecidos, digital ou em película, rodado em alguma ilha do Pacífico ou dentro de algum estúdio.

Ana Maria Bahiana, in Como ver um filme

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