Um filme é uma criatura muito especial,
muito específica, nascida das mesmas vontades antigas que levaram
nossos antepassados a narrar uma caçada ao mamute nas paredes das
cavernas de Lascaux ou criar miniaturas com cenas das vidas dos
santos. Num filme está um impulso ao mesmo tempo mais primitivo que
o da leitura e mais tecnologicamente sofisticado que o do teatro.
Como na leitura, queremos narrativas que alimentem nossa imaginação
— mas diferentemente do livro, onde mundos interiores, paisagens
distantes, estados de espírito e intenções ocultas podem ser
descritos, deixando que nossa imaginação preencha o vácuo, o filme
tem a obrigação de nos mostrar, ou pelo menos balizar visualmente
cada uma dessas coisas. Como no teatro, ele propõe a apreciação do
movimento, da presença humana, da máscara do personagem — mas
apenas com a intermediação da imagem captada, uma camada adicional
de interferência, manipulação, irrealidade.
E assim, desse jeito tão peculiar, o
cinema tem capturado nossa atenção, nossa imaginação, nosso tempo
e nosso dinheiro há mais de um século.
Um filme é uma encruzilhada de elementos
contraditórios. Exige ao mesmo tempo a mais alta tecnologia de
imagem e som e o artesanato mais puro de corte, costura, bordado,
maquiagem, escultura, carpintaria. Segue a visão de uma pessoa, o
diretor, mas emprega os talentos de uma pequena multidão de
indivíduos igualmente criativos. E — muito importante —
equilibra-se no gume afiado entre arte e comércio.
Os tempos românticos de “uma ideia na
cabeça e uma câmera na mão” se foram. É claro que existe toda
uma produção cinematográfica que pode se ater a esse princípio,
assim como existe toda uma outra produção audiovisual cujo destino
são galerias, museus e salas especiais. Mas não é de nenhuma das
duas que falamos aqui. Falamos daquela que chega ao cinema da sua
cidade, à sua locadora ou à sua TV. E, para essa, o contorcionismo
entre criatividade e responsabilidade fiscal é o que está na base,
na raiz. É a tensão entre dois polos que podem se aniquilar
mutuamente ou gerar maravilhas.
As normas que hoje regem o mercado da
produção cinematográfica mundial não são exatas e rígidas, mas,
basicamente, a filosofia principal é: um filme, mesmo “barato”,
é caro; antes de investir a pequena fortuna necessária para que ele
se torne realidade, há que se tentar ao máximo minimizar os riscos.
E esse processo interessa de perto a nós, os espectadores, porque
são as decisões tomadas durante essa tentativa de minimizar os
riscos que, em última análise, determinam a forma final que um
filme terá, se ele será ousado ou conservador, autoral ou
formulaico, luxuoso ou cru, cheio de estrelas ou repleto de
desconhecidos, digital ou em película, rodado em alguma ilha do
Pacífico ou dentro de algum estúdio.
Ana Maria Bahiana, in Como ver um filme
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